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UMA PORTA DE ENTRADA PARA A CRÍTICA MARXISTA DO DIREITO: “A LEGALIZAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA”

  • dhctem
  • 8 de mar. de 2016
  • 25 min de leitura

Marcus Orione

Jorge Luiz Souto Maior

Flávio Roberto Batista

Pablo Biondi

1. A crítica marxista do direito no século XX


Engels e Kautsky, certa feita, mencionaram com muito acerto que o direito “ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”, aparecendo em primeiro plano “a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes sociais de determinadas épocas” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 34). Em Marx, portanto, o direito nunca aparece no centro da análise. Ainda assim, mesmo tangenciando o fenômeno jurídico, a investigação marxiana deixou as indicações necessárias para uma compreensão científica e materialista do direito, sobretudo em O capital. Isto porque a crítica da economia política, ao consistir numa crítica do cerne da sociedade burguesa, de sua “anatomia” (MARX, 2008, p. 47), permite um vislumbre mais acurado sobre os outros aspectos da vida social do capitalismo, sobretudo no tocante às suas formas históricas.

A crítica marxista do direito propriamente dita é posterior, portanto, a Marx e Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa.

Com o triunfo da revolução de outubro de 1917, instaurou-se na Rússia uma ditadura revolucionária do proletariado sob a direção política do partido bolchevique. Naquele momento, teve início um processo de transição ao socialismo, que se materializou no desmantelamento do aparelho de Estado burguês e na expropriação da burguesia russa. E foi no calor da tentativa de construção de uma nova sociedade, isto é, de ultrapassagem da ordem social burguesa, que o problema do direito se colocou para os marxistas como um tema a ser aprofundado.

Pode-se dizer que o marco inaugural da crítica marxista do direito é a polêmica entre Petr Stucka e Evgeny Bronislavovich Pachukanis. Na referida polêmica, houve um rico debate metodológico sobre a abordagem do direito, sendo que a contribuição pachukaniana revelou-se muito mais sofisticada – ainda que tenha sido relegada ao esquecimento por força da contrarrevolução burocrática stalinista, a qual, inclusive, custou a vida do autor. De qualquer maneira, é certo que


O momento mais alto do pensamento jurídico marxista se dá com Evgeny Pachukanis. Num notável aprofundamento das teses de Marx, Pachukanis se põe a identificar a específica relação social que dá base à manifestação jurídica. Para além de Stutchka – que, se identificava o direito à luta de classes, não lhe apontava os mecanismos íntimos –, Pachukanis se põe a identificar a especificidade do direito (MASCARO, 2009, p. 48)


Enquanto Stucka (1988, p. 16) pensava o direito como um “sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada desta classe”, qualquer que fosse o caráter do modo de produção dominante (feudal, capitalista, socialista etc.), Pachukanis propôs que o direito seria uma manifestação própria das formações sociais capitalistas, consistindo numa forma social gerada pela estrutura mercantil da ordem social burguesa.

Para Pachukanis, não é suficiente identificar a divisão de classes no seio de uma sociedade para se determinar a presença do direito. Isto porque o direito, tal como o valor, a mercadoria, o capital etc., é uma categoria social que diz respeito a um determinado modo de produção e organização da vida material. Não se pode, assim, imaginar que os traços distintivos do fenômeno jurídico estariam presentes em sociedades muito distintas entre si (feudal, capitalista, socialista), apenas modificando-se a classe dominante favorecida (aristocracia, burguesia, proletariado). Esta seria uma maneira de se eternizar a forma jurídica, o que impede o conhecimento de suas características peculiares. Eis a ponderação de Pachukanis contra a formulação de Stucka:


O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma jurídica como tal de nenhum modo é exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a regulamentação jurídica como forma histórica determinada (PACHUKANIS, 1988, p. 21).



As incursões de Pachukanis na sua mais famosa obra, “A teoria geral do direito e o marxismo” são frutos do materialismo histórico-dialético, em que o autor situa o direito na perspectiva histórica, destacando um período, o capitalismo, que lhe atribui elementos próprios que o caracterizam. Portanto, a noção de forma jurídica, que não se confunde com o conteúdo jurídico, é a mais perfeita tradução de como componentes específicos do capitalismo moldam determinadas categorias econômico/sociais e lhes dão conotação específica. A forma social somente é possível, dadas determinações históricas, observadas características típicas de um modo de produção. Em outro modo de produção distinto, a forma também assume outra conotação. Assim, as especificidades do capitalismo moldam a forma jurídica, assim como essa última é moldada por aquele. A respeito de tais especificidades, que permitem o perfeito acoplamento da forma jurídica ao capital, trataremos no decorrer do artigo.

Antes de aprofundarmos ainda mais no tratamento dado a Pachukanis ao direito, algumas palavras sobre conceitos básicos marxistas se fazem necessárias.

A obra de Marx considera o trabalho como dado central para se entender o processo econômico de produção e circulação do capital. Ao discutir em especial com os economistas clássicos, como Ricardo e Adam Smith, o trabalho aparece como o único meio de produção capaz de valorizar o valor.

Aqui é importante perceber que todas as mercadorias possuem valor de uso e valor de troca.

O valor de uso da mercadoria é qualidade intrínseca, inerente a ela, no sentido de que, conforme a sua natureza, atenda às necessidades humanas. Uma cadeira serve para se sentar, assim como uma faca para cortar os alimentos. Esses são os valores de uso de uma cadeira e de uma faca. É claro que o valor de uso deve ser visto historicamente, mas o ponto do qual se parte é da coisa em si mesma.

O valor de troca faz aderir uma qualidade extrínseca às mercadorias no sentido de que, segundo a natureza das relações sociais (e não somente à sua própria) marcadas pela exploração do trabalho alheio, passam a ser mensuradas no mercado. Aqui não bastam as qualidades específicas de que são dotadas, mas também as qualidades sociais de que passam a ser dotadas, determinadas pela quantidade de trabalho despendido para a sua produção. No mercado, realiza-se uma troca de equivalentes. Uma faca, observada a quantidade de trabalho necessário para que fosse produzida, poderia valer duas cadeiras, e assim por diante. No entanto, para evitar que todos precisem ir com facas e cadeiras para o mercado, o que seria impossível, constituiu-se mercadoria considerada o equivalente universal: o dinheiro.

Perceba-se: troca de mercadorias e dinheiro já existiam antes do capitalismo. O que então faz com que sejam percebidas como forma específica do capital? A resposta está exatamente na mercadoria chamada força de trabalho. Ou seja, de novo o trabalho como central na teoria de Marx.

Sendo o trabalho o único meio de produção que produz valor, no capitalismo, a grande sacada é a sua dominação e expropriação por outro que detém os demais meios de produção, como forma de acumulação de sua riqueza. Prestem atenção: o trabalho enquanto fator de riqueza das nações, no lugar de coisas inanimadas, como os metais ou a terra (para os fisiocratas), o que já havia sido percebido por autores como Adam Smith (A riqueza das nações). No entanto, a percepção de sua expropriação como forma de acúmulo de riqueza de uma classe e montagem de todo um sistema (o capitalismo) é obra do engenho de Marx.

Vamos explicar melhor como o trabalho é o único valor que gera valor.

Uma pedra, na natureza, é apenas uma pedra. Descoberto que se trata de uma jazida de plutônio, trata-se de matéria-prima importantíssima. No entanto, acreditar que a jazida ou os instrumentos utilizados no seu processamento é que geram a riqueza se trata de uma ingenuidade.

Sem o trabalho de alguém que, devidamente preparado, descobrisse as propriedades daquela jazida ou mesmo sem a descoberta, pelo trabalho humano, das formas de processamento, aquela jazida seria, na natureza, uma como tantas outras. Mas não apenas o trabalho intelectual é importante aqui. Esse de nada valeria sem o esforço de operários que realizam, com a força de seus músculos, o processamento.

Portanto, nem matéria-prima e nem máquinas, como se costuma pensar, produzem a riqueza do capitalista. O que produz a sua riqueza é a apropriação do trabalho alheio, para gerar valor (mais-valia). Assim, detendo os outros meio de produção, o capitalista quer agregar valor a esse capital e somente pode fazê-lo por meio da exploração do trabalho alheio.

O trabalho, nessa fase da obra de Marx, que culmina com O Capital em seus três livros, assume uma conotação menos ontológica e passa a estar mais ligado às relações sociais de produção e reprodução da vida material.

Logo, dinheiro ou troca de mercadorias aqui somente têm sentido com a apropriação da força de trabalho alheia, esta também considerada agora no capitalismo como mercadoria. Essa a grande sacada do capitalismo em relação aos outros modos de produção. Para que se possa aumentar a extração da mais-valia, diversamente de outras expropriações que já ocorreram anteriormente no seio da sociedade, é importante que o possuidor desta mercadoria (força de trabalho) se sinta livre e igual a qualquer proprietário, para operar no mercado a sua troca.

Essa nova relação social específica, que diverge de troca de mercadorias em uma sociedade com escravos (antiguidade) ou com servos (idade média), promove uma nova dimensão do valor de troca das mercadorias em geral, com o dado específico de que a mercadoria força de trabalho aparece – apenas aparece, atenção para esse termo – como se fosse realizada por sujeitos proprietários que são tratados como livres e iguais.

Retornando a Pachukanis, é imprescindível, pois, conceber-se o direito enquanto forma social, e uma forma que se distingue por trazer em si o chamado princípio da subjetividade jurídica, entendido como “o princípio formal da liberdade e da igualdade; da autonomia da personalidade etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 10). O que caracteriza o direito, então, não é uma normatividade organizada, como supõem os juristas tradicionais, ou interesse de classe inscrito na dominação de uma classe sobre a outra, qualquer que seja o caráter da formação social, como quer Stucka, mas sim a figura do sujeito de direito, a consagração do indivíduo como uma pessoa abstrata, desgarrada de vinculações estamentais.

Ora, esse indivíduo abstrato só tem lugar na história num período bastante determinado, é dizer, a época das relações de produção capitalistas. Foi com o entranhamento da relação de capital na produção material da vida que a sociedade burguesa erigiu-se como tal. Isto se deu, sobretudo, com a subsunção real do trabalho ao capital e com o surgimento da grande indústria capitalista, organizada em torno do trabalho produtivo do trabalhador coletivo e do ciclo do capital industrial. Nessa perspectiva, compreende-se a emergência do sujeito abstrato, e que reflete a abstração do trabalho na troca de mercadorias e também na própria produção do valor. O teórico pachukaniano Márcio Bilharinho Naves (2014, p. 55-56) nos traz uma elaboração muito profícua a este respeito:


Ao revestir-se da forma de um sujeito – nas condições de um modo de produção especificamente capitalista, isto é, sob as condições da subsunção real do trabalho ao capital –, o indivíduo se transmuta em vontade pura, abstraída de qualquer determinação. [...] Assim, a constituição do sujeito de direito está vinculada ao processo de abstração próprio da sociedade do capital, de tal modo que podemos dizer que ao trabalho abstrato vai corresponder à abstração do sujeito, ou seja, o processo de equivalência mercantil derivado do caráter abstrato que toma o trabalho em certas condições sociais determina o processo de equivalência entre os sujeitos, que só é possível se as pessoas perderem qualquer qualidade social que possa diferenciá-las.



Como se nota, a linha de raciocínio apresentada por Pachukanis, e que está centrada no papel distintivo do princípio da subjetividade e do nexo necessário entre capitalismo e direito – tanto no sentido de que não há capitalismo sem direito quanto no sentido de que só pode haver direito, em sua expressão mais acabada, sob o capitalismo –, é a que melhor diferencia o fenômeno jurídico de outras instâncias da vida social. Aliás, como bem identificou o jurista soviético, esta diferenciação é condizente com um processo histórico real que, com o advento da ordem social burguesa, separou a forma jurídica da moral, da religião[1], dos costumes etc., permitindo um desenvolvimento singular de suas categorias:


Não devemos nos esquecer que a evolução dialética dos conceitos corresponde à evolução dialética do próprio processo histórico. A evolução histórica não implica apenas uma mudança no conteúdo das normas jurídicas e uma modificação das instituições jurídicas, mas também um desenvolvimento da forma jurídica como tal. Esta, depois de haver surgido num estágio determinado da civilização, permanece, durante longo tempo, num estado embrionário com uma leve diferenciação interna e sem delimitação no que concerne às esferas próximas (costumes, religião). Foi apenas desenvolvendo-se progressivamente que ela atingiu o seu supremo apogeu, a sua máxima diferenciação e precisão. Este estágio de desenvolvimento superior corresponde a relações econômicas e sociais determinadas. Ao mesmo tempo este estágio caracteriza-se pelo aparecimento de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o sistema jurídico como totalidade orgânica (PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).



Por conta da repressão stalinista, a teoria pachukaniana foi brutalmente interrompida no seu desenvolvimento. Pachukanis foi executado em 1938, no contexto dos famigerados Processos de Moscou[2]. Desse modo, a produção teórica marxista sobre o direito sofreu um revés muito grande. Sob o stalinismo, inclusive, predominou a doutrina de Andrei Vichinsky, que identificada o direito à legalidade posta e fazia a mais completa apologia ao regime stalinista e à deformação burocrática do Estado nascido com a revolução de outubro.

E com o trágico desfecho da revolução russa, que acabou enterrada pela degeneração stalinista, o impulso teórico que colocou em foco o problema do direito se perdeu. A transição socialista na URSS foi abortada, de modo que a ditadura revolucionária do proletariado, o regime dos soviets, foi substituída pela ditadura burocrática de um partido bolchevique irreconhecível, dirigido por uma camarilha que aniquilou moral e fisicamente a vanguarda e as lideranças da revolução. No campo de estudo do direito, esse retrocesso colossal se manifestou no fim das pesquisas mais profundas. O fenômeno jurídico voltaria a ter uma dimensão marginal nas obras marxistas.

Com efeito, encontramos considerações sobre o direito em autores clássicos do marxismo do século XX, como, por exemplo, Louis Althusser em seu Sobre a reprodução (1995). Todavia, faltavam estudos de fôlego que se debruçassem direta e prioritariamente sobre a questão do direito. Faltava um sopro renovador que pudesse retomar o caminho trilhado por Pachukanis e avançar nas elaborações. Este sopro não foi dado por Althusser, mas alguns de seus seguidores tomaram para si, de certa maneira, esta tarefa. Dentre eles, Bernard Edelman mostrou-se o mais brilhante.


2. A obra de Bernard Edelman


A denúncia dos crimes de Stalin e a poderosa vaga revolucionária de 1968, a última em solo europeu, enfraqueceram o prestígio e a hegemonia do aparato stalinista na esquerda francesa. Desenhou-se, assim, um cenário de oportunidade para uma renovação do marxismo, tanto em relação à dogmática oficial patrocinada por Moscou quanto em relação a algumas tendências reformistas.

Não houve na França, como na Rússia de 1917, uma insurreição proletária que culminou com o início de uma transição socialista. Contudo, a vaga revolucionária de 1968 colocou a classe operária em movimento, num ascenso fortíssimo que se enfrentou não apenas com o governo conservador de Charles De Gaulle, mas também com a linha política do PCF, que canalizou a força espetacular do levante operário e popular para o terreno reformista das negociações econômicas – o que deu sobrevida a um governo que estava prestes a cair, e que de fato poderia cair se houvesse uma decidida direção revolucionária à frente do movimento de massas.

A frustração de um ascenso revolucionário que terminou em negociações econômicas conduzidas por uma direção política conciliatória colocou a questão do “terreno” da luta de classes, ou seja, do espaço social em que ela se realiza. Provou-se novamente na prática a tese leninista de que, no confronto econômico, prevalece a consciência sindicalista, “tradeunionista”, “uma convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos, lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis necessárias aos operários etc.” (LÊNIN, 2010, p. 89), mas sem se colocar em causa a dominação do capital e a questão do poder. Isso porque a luta econômica e sindical se limita a barganhar o preço da força de trabalho, deixando intocado o problema da sua comercialização, é dizer, o cerne do modo de produção capitalista.

Ora, um conflito que se encerra na sua pauta econômica, que não ultrapassa as determinações mercantis do capitalismo, é um conflito que se dá no interior da arena do direito, e com pleno respeito às suas linhas de demarcação. Prevalecem, nessas condições, tanto a forma jurídica em sua generalidade quanto o seu arcabouço institucional sindical, o qual instrui e dá sustentação à permanência da relação capital-trabalho. Não se pode esquecer que a estrutura sindical é um componente necessário de um regime social em que a força de trabalho é uma mercadoria, e que, como tal, precisa passar por foros de negociação do seu preço. E dado o liame intrínseco entre direito e mercadoria no capitalismo, como bem demonstrou Pachukanis, a forma jurídica demonstra todo o seu peso ao envolver e disciplinar o mercado de trabalho.

Na conjuntura inaugurada em 1968, portanto, restou escancarada a influência do direito sobre a luta de classes. Apesar do ímpeto revolucionário inicial, o movimento de massas se viu prisioneiro das armadilhas do terreno jurídico, as quais necessariamente o conduziriam à conciliação de classes, à restauração da ordem e à reprodução da sociabilidade do capital. Discutir o direito sob um ponto de vista marxista, então, tornou-se uma necessidade urgente naquele contexto. Neste contexto é que surge o marxismo que assenta bases nas proposições de Louis Althusser, em sua posição de afastamento contínuo do stalinismo e de crítica implacável ao reformismo, logrou produzir obras de enorme importância para a crítica do fenômeno jurídico. E é exatamente no contexto da crítica althusseriana que se deve conceber a obra de Bernard Edelman.

Em 1973, Edelman inicia esse movimento de crítica radical do direito com a obra O direito captado pela fotografia (2001). Três anos depois, Michel Miaille lança a sua Introdução crítica ao direito (2005), igualmente partindo das premissas pachukanianas. E, em 1978, outras duas obras desses autores foram publicadas: O Estado do direito, de Michel Miaille (1980), e A legalização da classe operária, de Bernard Edelman (2016).

Em que pese a importância dos textos de Miaille, colocaremos nosso foco no trabalho de Edelman. Neste autor, encontramos uma teoria do direito que parte decididamente dos pressupostos pachukanianos, e que se propõe a sofisticá-los por meio da teoria do sujeito – e de sua interpelação ideológica – em Althusser. Segundo Louis Althusser (1995, p. 23), “não há ideologia que não seja pelo sujeito e para sujeitos[3]”, no sentido de que o indivíduo é “sempre já” (isto é, desde sempre) sujeitado pela ideologia, constituído por ela concretamente por meio das práticas materiais que a instituem e dos aparelhos ideológicos que cuidam da sua reprodução. Em uma apertada síntese, desde o instante em que qualquer sujeito vem ao mundo já se encontra sujeito a uma ideologia na qual estará inserido, sendo que, individualmente, não terá condições de superá-la. Na realidade, mais do que isto há aparelhos que reforçam esta ideologia, tais como a escola, o sindicato, a mídia (para usar um exemplo mais atual) e outros.

Em seu livro O direito captado pela fotografia, Bernard Edelman mostra-se caudatário desta concepção althusseriana, indicando um caminho de diálogo com a linha teórica de Pachukanis:


Os “indivíduos” são interpelados como sujeitos pelo direito. Essa interpelação é constitutiva de seu ser jurídico mesmo, no sentido de que é esta interpelação “tu és um sujeito de direito” que lhes dá o poder concreto, que lhes permite uma prática concreta. “Já que tu és o sujeito de direito, tu és capaz de adquirir e de (te) vender” (EDELMAN, 2001, p. 26).


Coerentemente com a crítica pachukaniana, Edelman identifica o mercado como o espaço de realização das práticas materiais que ensejam a figura do sujeito de direito. A forma mercantil engendra um indivíduo à imagem e semelhança do portador de mercadorias, um sujeito formalmente livre, igual aos outros e potencialmente proprietário. E dentre os três aspectos centrais desse sujeito de direito, destaca-se a propriedade, ou seja, a sua característica de ser “um proprietário de mercadorias abstrato e transposto para as nuvens”, para usarmos a expressão pachukaniana (1988, p. 78). É com referência na propriedade que as categorias jurídicas de liberdade e igualdade se estabelecem. Uma vez que a liberdade e a igualdade são categorias derivadas da esfera mercantil do valor e da troca, elas se colocam em função dos proprietários de mercadorias. É por meio da realização contratual delas que a propriedade se transfere de mãos em mãos no processo incessante de permutas. Edelman (2001, p. 110) conclui que “a movimentação da propriedade privada cria, de fato, uma liberdade e uma igualdade, mas esta liberdade e esta igualdade são aquelas mesmas da propriedade privada”. Na perspectiva do mercado, o trabalhador deve estar apto para vender a sua força de trabalho, como proprietário dela. Não pode ser tratado de forma distinta dos que possuem o capital, que da força de trabalho extraem o principal elemento de concentração de suas riquezas. Caso contrário, não passaria de um escravo ou de um servo. No entanto, como não estamos mais na antiguidade ou na idade média, a expropriação da força de trabalho precisa contar com a aquiescência do próprio trabalhador. Portanto, ao se conceber a figura do sujeito de direito como homem livre, igual e proprietário, para a circulação da principal mercadoria que deve ser expropriada pelo capital, a força de trabalho, há a consolidação concomitante de uma ideologia jurídica – a que qualquer indivíduo se encontra submetido, e que corresponde a categorias estudadas por Althusser, como a de que o sujeito é interpelado pela ideologia, no sentido de que não tem condições, individualmente, de a ela resistir, nela já se inserindo desde o instante em que passa a existir como ser vivente.

Assim, consagra-se uma imagem abstrata do homem na sociedade burguesa, um indivíduo que é nivelado pelo mercado, e que dele participa independentemente da sua ascendência social. Os indivíduos se apresentam como portadores não apenas das mercadorias que oferecem, mas também das relações sociais que dão base às trocas. Personificando a equivalência do trabalho abstrato, eles são postos como “equivalentes vivos”, de tal sorte que “o processo do valor-de-troca torna-se o processo do sujeito, e o processo do sujeito, o processo do valor-de-troca” (EDELMAN, 2001, p. 111).

Esmiuçando a relação entre a forma jurídica e a forma mercantil, Edelman explicita as funções concretas e ideológicas do direito, postulando que ele, em sua vivência, “fixa as formas de funcionamento do conjunto das relações sociais, torna eficaz, no mesmo momento, a ideologia jurídica, que é a relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais em geral”, assumindo a “dupla função de fixar concretamente e ‘imaginariamente’ – e seria melhor dizer que a fixação concreta jurídica é ao mesmo tempo ideológica – o conjunto das relações sociais” (EDELMAN, 2001, p. 104). E nisto, inclusive, se vê mais uma apropriação do pensamento de Althusser acerca da ideologia, concebendo-a como uma “relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais em geral”.

Como síntese da crítica de Edelman à forma jurídica em sua generalidade, vale citar a seguinte passagem:


O que me proponho a demonstrar ao deixar voluntariamente de lado o que se passa “alhures”, no “laboratório secreto da produção”, é que o direito toma a esfera da circulação como dado natural; que esta esfera, tomada em si como absoluta, não é nenhuma outra senão a noção ideológica que porta o nome hobbesiano, rousseauniano, kantiano ou hegeliano, de sociedade civil; e que o direito, ao fixar a circulação, não faz senão promulgar os decretos dos direitos do homem e do cidadão; que ele escreve sobre a fronte do valor-de-troca os signos da propriedade, da liberdade e da igualdade, mas que estes signos, no secreto “alhures”, lêem-se como exploração, escravidão, desigualdade, egoísmo sagrado (EDELMAN, 2001, p. 107).


Foi sob esta perspectiva de crítica radical que Edelman desvendou como o direito, introduzindo categorias charmosas na vida social, chancela a exploração capitalista e seus desdobramentos. Em sua investigação implacável, nem mesmo noções como liberdade e igualdade foram poupadas. A base dos direitos humanos, tidos como um dos maiores marcos da civilização, restou desmistificada. O passo seguinte do autor seria levar esta concepção aos domínios do direito do trabalho, o que elevaria sua contribuição ao marxismo a um novo patamar.


3. A crítica do processo de legalização da classe operária


Em A legalização da classe operária, Edelman apresenta uma crítica do direito do trabalho, em especial do direito coletivo do trabalho. E por meio dessa crítica, ele demonstra como a forma jurídica incide sobre a luta de classes, inclusive nos momentos em que esse conflito aparece mais claramente, como nas greves operárias. A grandeza dessa obra reside, assim, não apenas no rigor metodológico e na extensão do campo de análise, mas também no fato de ela conjugar dois elementos muito caros ao marxismo: as formas sociais do capitalismo (no caso, o direito) e a luta de classes, esta contradição fundamental que tem colocado a história em movimento até dos dias de hoje.

O conteúdo da obra consiste num desvelamento profundo das ilusões da doutrina jurídica acerca do direito do trabalho e de seu papel na sociedade. Na contramão desta tradição que vê no ramo juslaboral apenas um inventário de conquistas obreiras históricas, ou mesmo um sinal de triunfo da dignidade humana, Edelman (2016, p. 18) alerta que “a classe operária pode ser 'desviada', precisamente por suas próprias 'vitórias', que podem apresentar-se também como um processo de integração ao capital”, lembrando, ainda, que “a 'participação' nunca esteve ausente da estratégia da burguesia, e há veneno em seus 'presentes'”.

Edelman não despreza as medidas de bem-estar que foram obtidas sob pressão do movimento operário. Contudo, seu esforço é o de salientar o outro lado da moeda, ou, se quisermos, o “preço” que foi pago por essas concessões do capital. Esse preço, por certo, não foi a supressão da luta de classes. Em sua filiação althusseriana, Edelman seguramente entende que “a luta de classes e a existência das classes são uma só e mesma coisa”, uma vez que a divisão da sociedade em classes “não se faz post festum; é a exploração de uma classe por outra e, portanto, a luta de classes que constitui a divisão em classes. Pois a exploração já é luta de classes” (ALTHUSSER, 1978, p. 27). É por isso que nosso autor fala em desvio desse conflito, e não na sua abolição. Ocorre que, com as conquistas econômicas da classe operária e sua integração política (e jurídica, pelo reconhecimento de direitos) à sociedade burguesa, o enfrentamento entre capital e trabalho desloca-se para o âmbito institucional dos partidos da ordem e do sindicalismo oficial, ou seja, para o campo do Estado em sua concepção ampliada, de maneira que “as próprias lutas operárias são travadas nesses aparelhos, elas se desenvolvem nessas estruturas e essas estruturas provocam efeitos sobre o combate” (EDELMAN, 2016, p. 19).

Eis aí o cerne da questão. O terreno sobre o qual se realiza o embate está longe de ser indiferente para o seu resultado. Enquanto uma forma, o direito envolve o seu conteúdo e o submete às constrições necessárias para moldá-lo em favor da reprodução da sociabilidade do capital – de tal sorte que as posições jurídicas conquistadas pela classe operária não traduzem o seu poder de classe propriamente, mas antes o poder da ordem social que se organiza juridicamente. Isto porque a relação entre capital e trabalho é uma relação jurídica entre sujeitos, é um antagonismo social expresso num liame entre contratantes.

Todos os avanços do movimento operário que foram contemplados legalmente são concretizados a partir das categorias jurídicas que instruem a sociedade burguesa e o direito como uma de suas formas sociais. Logo, não é possível imaginar que a classe operária possa se amparar no direito para questionar o modo de produção capitalista. Tampouco é possível que ela construa no interior da forma jurídica qualquer estratégia de poder, pois o poder, nessa sociedade, só pode ser aquele que corresponde à sua estruturação capitalista.

Para o direito do trabalho, as consequências desse raciocínio são tremendas. Visto como uma espécie de direito de resistência pelos juristas progressistas, ou mesmo como o embrião para um novo direito, como uma possibilidade de renovação geral da ordem jurídica e do seu liberalismo tradicional, o direito do trabalho se revela, graças à inquirição implacável de Edelman, como mais um espaço de consagração do domínio burguês. Transcrevamos as palavras do autor em toda a sua crueza:




Devemos nos livrar de uma vez por todas da ilusão tenaz de um “direito operário” que manteria distância do direito burguês, que seria um tubo de ensaio em que se elaboraria um “novo direito”. Tradicionalmente, os especialistas têm empregado seus esforços nesse sentido. É necessário, dizem esses especialistas, autonomizar o direito do trabalho, dar-lhe seus títulos, reconhecer sua especificidade. Ele é, continuam eles, um direito coletivo, um direito de massa, para as massas, que não tem mais nada – ou cada vez menos – a ver com o direito “comum”, leia-se, o direito civil. Desse esforço nasceu o “socialismo dos juristas”, que se perpetua até hoje sob as espécies sutis e técnicas das relações entre direitos: direito do trabalho/direito civil, direito do trabalho/direito comercial, direito do trabalho/direito público…

Como se o trabalho estivesse “do lado” do capital e do Estado! Como se o “direito operário” não fosse o direito burguês para o operário! E como se, enfim, milagrosamente, o direito do trabalho fosse uma zona juridicamente “protegida”!

Não existe o “direito do trabalho”; existe um direito burguês que se ajusta ao trabalho, ponto final (EDELMAN, 2016, p. 19).


É claro que, para chegar a um diagnóstico tão “drástico” como esse, Edelman não se limitou a construções simplórias ligadas à metáfora marxiana da relação entre estrutura e superestrutura. O autor guiou-se pela compreensão acerca das formas sociais e de suas consequências. Uma vez que tais formas cristalizam as relações de produção que as engendram, delas não se pode esperar qualquer tipo de subversão contra a ordem existente. Nessa ordem de considerações, não se poderia conceber o direito do trabalho como um direito do trabalhador contra a classe capitalista, ou então imaginá-lo como um ramo jurídico “menos burguês”. Ao longo de sua obra, Edelman demonstra à exaustão que as relações entre capital e trabalho, ao serem mediadas juridicamente pelo direito coletivo do trabalho, encontram um ponto de sustentação bastante sólido, e que a forma jurídica aplicada ao embate capital-trabalho sofistica a supremacia burguesa a partir da “captura” do movimento operário, do seu enredamento.

Ao dizer que não existe um direito do trabalho que “pertença” ao trabalhador, ou que possua uma substancialidade distinta daquela que compõe o direito burguês em geral, Edelman recupera a radicalidade de Pachukanis, já que este, coerentemente com o caminho teórico que trilhou, propôs que o direito é sempre o direito burguês, não podendo prestar-se ao serviço de construção de um outro tipo de sociedade, ou mesmo de contraposição aos interesses da classe capitalista. O pensador russo compreendia que “o aniquilamento de certas categorias (precisamente de certas categorias e não de tais ou quais prescrições) do direito burguês, em nenhum caso significa a sua substituição pelas novas categorias do direito proletário”. E é assim pelo mesmo motivo que a supressão “das categorias do valor, do capital, do lucro etc., no período de transição para o socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias do valor, do capital etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 26-27). Portanto, por mais que o direito do trabalho apresente figuras alternativas àquelas do direito civil, mais liberal em sua compleição, daí não se infere que elas atentem contra a lógica da sociedade burguesa.

Em acréscimo, a sutileza da função cumprida pelo direito do trabalho está no seu modo de envolver o proletariado em sua oposição face à burguesia. A “legalização da classe operária” consiste nesse expediente de subsunção de uma classe potencialmente revolucionária, e que traz em si uma negatividade ínsita em relação à burguesia e ao capitalismo, aos ditames da forma jurídica. Significa fazer com que o confronto de classe se realize numa arena segura, onde os limites do enfrentamento estejam bem delimitados, impedindo-se uma radicalização que ultrapasse as margens de tolerância das relações de produção. Para tanto, o capital tem a “astúcia” de dar à classe operária “uma língua que não é a sua, a língua da legalidade burguesa, e é por isso que ela se exprime gaguejando, com lapsos e hiatos que às vezes rasgam o véu místico (Maio de 1968 na França)” (EDELMAN, 2016, p. 22). Observe-se, inclusive, que Edelman não é um fatalista, que ele prevê a possibilidade de rupturas com a ordem burguesa. A diferença é que, contrariamente aos adeptos do “socialismo jurídico”, ele vislumbra essa possibilidade nos processos revolucionários, e não no direito ou nos demais aparatos institucionais do capitalismo.

A tarefa assumida por Edelman, pois, é a de decodificar a “linguagem” da legalidade burguesa, entender como ela aprisiona o movimento operário nas molduras da sociabilidade capitalista, como se processa o enquadramento jurídico da classe operária e de sua luta contra o capital.

O primeiro passo para o entendimento desse processo é o correto dimensionamento da relação capital-trabalho. Edelman esmiúça a unidade dialética desse par, pondo em relevo o fato de que, no capitalismo, trabalho e capital se determinam mutuamente. Esta unidade, com efeito, é basilar ao modo de produção capitalista, e não há um único conflito trabalhista que coloque em causa a natureza desse vínculo. Ao contrário, o direito do trabalho reproduz as condições sociais da produção capitalista e conforma a exploração de classe:



Podemos compreender agora como o contrato de trabalho reproduz o direito de propriedade, e como o direito de propriedade reproduz o contrato de trabalho. De um lado, o contrato de trabalho aparece como uma técnica de venda do “trabalho”, que só dá direito a um salário; de outro, o proprietário dos meios de produção compra a força de trabalho sob a forma de salário e a incorpora juridicamente a sua propriedade.

No final das contas, a relação capital/trabalho resolve-se numa relação de título: título de trabalho em oposição ao título de propriedade.

Assim, quando combinam contrato de trabalho e propriedade privada, os tribunais reproduzem de fato a separação do trabalhador de seus meios de produção (EDELMAN, 2016, p. 31).


Há, pois, uma simetria entre o contrato de trabalho e o direito de propriedade, ou melhor, uma correlação necessária, e que instrui o que Edelman chama de poder jurídico do capital. A dominação do capital sobre o trabalho é exercida sob a forma de um vínculo contratual que atribui direitos e deveres para as partes envolvidas num arranjo aparentemente igualitário, destoante do perfil estamental da sociedade feudal, por exemplo. Mas é essa igualdade entre polos contratantes que abriga a coleta do mais-valor e que dá a dinâmica da exploração capitalista.

A incidência da igualdade jurídica sobre a relação capital-trabalho traz efeitos sobre o modo como esse antagonismo imanente se desenvolve, e Edelman faz uma imersão nessas implicações. O teórico francês aponta, primeiramente, a contratualização das greves: o confronto entre as classes é enquadrado como um confronto entre sujeitos munidos de direitos, de sorte que os antagonistas guardam obrigações entre si mesmo quando entram em choque. E mesmo o alcance e a intensidade desse choque são submetidos a uma disciplina jurídica, a uma avaliação de licitude e ilicitude dos atos praticados. Dessa maneira, “a greve é lícita na medida do contrato de trabalho; quando há abuso contratual, há greve abusiva”, o que significa dizer que “a greve, quando se torna extracontratual, torna-se, por consequência, ilícita ou ilegal, segundo sutilezas que não nos interessam por ora” (EDELMAN, 2016, p. 38).

O intuito último dessa contratualização é a defesa da produção. O critério aferidor da abusividade ou não da greve é o seu potencial lesivo à normalidade da produção capitalista. Não sendo dado à classe burguesa, em condições de normalidade política, simplesmente proibir as greves – ao menos não na época de maturidade do capitalismo –, a política oficial para essas formas de luta proletária é a de contenção segundo regras dedicadas a poupar a produção capitalista de maiores abalos. Nesse sentido, admite-se a prática grevista, mas com a condição de que o empregador seja avisado previamente, que um mínimo do processo produtivo seja mantido em funcionamento, que a posse do capital sobre os meios de produção não seja afrontada e que as reivindicações do movimento paredista não ultrapassem o âmbito sindical, quer dizer, a seara econômico-profissional da categoria mobilizada.

Com tudo isso, a forma jurídica não só preserva a fluidez da produção, como também pretende forçar os trabalhadores a adotarem uma estratégia de luta previsível e admissível, tolerável para os padrões capitalistas. Merece destaque, dentre os requisitos usuais para a licitude da greve, o perfil econômico-profissional que se espera das reivindicações do movimento operário. Trata-se simplesmente de se reproduzir a separação formal entre Estado (política) e sociedade civil (interesses econômicos) que caracteriza o capitalismo, além de se interditar a politização da luta operária e a formação de mobilizações que superem a divisão do proletariado em categorias profissionais. Pois é da superação desse fracionamento em interesses profissionais que depende a unificação do proletariado na sua oposição inconciliável perante o capital. Somente assim a luta de classes pode atingir um patamar superior, comportando uma disputa não mais em torno do preço de venda da força de trabalho, e sim das relações de propriedade que transformam a força de trabalho em mercadoria.

Pelo aspecto ideológico do direito estudado por Edelman, logo se percebe que a forma jurídica conspira contra qualquer tentativa de se por em causa as relações de produção capitalistas. Ela se empenha, ao revés, em naturalizar tais relações e dissimular seu caráter de classe por meio de um discurso humanista muito difundido pelos juristas, e que, apropriado pelos tribunais, fundamenta decisões repressivas contra os trabalhadores em greve, exercendo uma disciplina férrea contra eles sempre que suas mobilizações ameaçam sair da esfera sindical-profissional. Daí se entende a visão do autor quanto à impossibilidade de uma ordem jurídica admitir, a título ilustrativo, as greves políticas ou as ocupações dos locais de trabalho.

Tendo em vista todas essas circunstâncias, Edelman não exagera em nada ao sintetizar suas reflexões sobre o direito de greve, tido como um triunfo absoluto da classe operária pelos juristas progressistas e humanistas, da seguinte maneira:


O direito de greve é um direito burguês. Entendamos: não digo que a greve é burguesa, o que seria um absurdo, mas que o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer, muito precisamente, que a greve só atinge a legalidade em certas condições, e essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital (EDELMAN, 2016, p. 48).






NOTAS




[1] “O direito é forma que vai se sofisticando na medida em que se separa das outras manifestações da humanidade, como, por exemplo, a religião. Assim, por exemplo, em períodos mais remotos da humanidade, quando o direito não tinha a mesma função atual (...), a sua convergência com a noção de religião era muito mais comum. Por exemplo: nos primórdios, o sistema de provas era determinado pelo chefe religioso. Aliás, sequer havia o que se provar se o deus/homem que governasse determinasse a solução do conflito, prescindindo até mesmo de provas. Em momento posterior, as ordálias ou juízos de deus eram também um bom exemplo de como a prova estava (...) ligada à questão religiosa. Aquele que ultrapassasse as limitações impostas (como passar incólume por um chão de brasas, por exemplo) contava com a aquiescência divina, já que a verdade estaria ao seu lado. Com o tempo, admitiu-se o sistema de prova legal (...), (que) corresponde a uma necessidade do nascituro capitalismo, envolvido com a ideia liberal da legalidade em seu sentido estrito. “ (CORREIA, 2013, p. 556).


[2] Em 1938, a pretexto do assassinato de Kirov, um quadro do partido bolchevique, desencadeou-se na URSS uma onde de perseguições contra antigos militantes do partido, e que consistiu num recrudescimento da burocratização e da repressão política que assolavam o país desde o final da década de 1920. Figuras históricas do partido bolchevique como Kamenev, Zinoviev, Bukharin e muitas outras foram forçadas a confessarem crimes que não cometeram, o que resultou em sua condenação e execução - muitos desses, inclusive, haviam integrado blocos com Stalin antes de serem renegados. A maioria da antiga direção bolchevique foi fisicamente eliminada nos Processos de Moscou. Trotsky foi condenado, mas se encontrava no exílio. Em 1940, foi assassinado por um agente da GPU.


[3] Todas as citações de obras em idioma estrangeiro serão traduzidas por nós livremente.

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