RELATÓRIO - Reunião 17/05/2018 - Textos do “Gramsci Maduro” - Tema: Americanismo e Fordismo.
Relatório – Reunião 17/05/2018
Tema: Americanismo e Fordismo.
TEXTO – GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere – Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 241-52; p. 265-276.
Nota 1 – “Introdução às notas acerca do americanismo e do fordismo
1. O autor inicia a nota com a tese segundo a qual tanto o americanismo como o fordismo resultam da necessidade de se chegar a uma econômica programática (que, conforme ressaltado por Coutinho na nota de rodapé 1, provavelmente se refere à economia socialista). Ainda, os diversos problemas examinados no americanismo e no fordismo são os elos da cadeia que delimitam a passagem do “velho individualismo econômico para a economia programática”.
Observação do grupo: como será melhor desenvolvido ao longo das notas, o americanismo se refere à face ideológica-cultural/ético-política a qual assume o modo de produção capitalista à época de Gramsci, enquanto o fordismo se refere diferente à dimensão técnico-produtiva.
2. Gramsci registra alguns dos problemas mais importantes e que devem ser analisados para a compreensão desses fenômenos. Segundo o autor, tais problemas são:
“1) substituição da atual camada plutocrática por um novo mecanismo de acumulação e distribuição do capital financeiro, baseado imediatamente na produção industrial; 2) questão sexual; 3) questão de saber se o americanismo pode constituir uma ‘época histórica’, ou seja, se pode determinar um desenvolvimento gradual do tipo (...) das ‘revoluções passivas’ próprias d o século passado, ou se, ao contrário, representa apenas a cumulação molecular de elementos destinados a produzir uma ‘explosão’, ou seja, uma revolução do tipo francês; 4) questão da ‘racionalização’ da composição demográfica europeia; 5) questão de saber se o desenvolvimento deve ter seu ponto de partida no interior do mundo industrial e produtivo ou se pode ocorrer a partir de fora, através da construção cautelosa e maciça de uma estrutura jurídica formal que guie a partir de fora os desenvolvimentos necessários do aparelho produtivo. 6) a questão dos altos salários (...); 7) o fordismo como ponto extremo do processo de sucessivas tentativas de indústria no sentido de superar a lei tendencial da queda da taxa de lucro; 8) a psicanálise (...); 9) o Rotary Club e a Maçonaria (...)”.[1]
Nota 2 – Racionalização da composição demográfica europeia
3. As tentativas de introduzir alguns aspectos do americanismo e do fordismo pela velha camada plutocrática busca conciliar o inconciliável: a arcaica e anacrônica estrutura social europeia com uma “forma moderníssima de produção e de modo de trabalhar”[2], ou seja, com o fordismo. Segundo o autor, a Europa quer os benefícios do fordismo – em relação à produtividade e à concorrência – mas conservar a camada parasitaria que consome grande parte do mais valor total extraído, debilitando, assim, o poder da concorrência.
4. O americanismo, em sua forma completa, necessita de uma específica condição prévia, segundo a qual os estadunidenses sequer tiveram que se preocupar, qual seja, uma “‘composição demográfica racional’, que consiste no fato de que não existem classes numerosas sem uma função essencial no mundo produtivo, isto é, classes absolutamente parasitárias.”[3] De maneira irônica, Gramsci afirma que a tradição e a civilização europeia, diferentemente da sociedade estadunidense, possui diversas classes parasitárias sedimentadas pela história passada. Exatamente comparando os Estados Unidos com a Europa, em especial com a Itália, Gramsci afirma que “quanto mais antiga é a história de um país, tanto mais numerosas e gravosas são essas sedimentações de massas ociosas inúteis que vivem do patrimônio dos avós”[4]. Essas sedimentações são difíceis de serem captadas pela estatística, mas as indicações de, por exemplo, existência de determinadas formas de vida nacional podem ser esclarecedoras, como é o caso do numero relevante de grandes e médios aglomerados urbanos sem fábricas.
Observação do grupo: Gramsci teve contato com o desenvolvimento da sociedade estadunidense por meio de jornais de sua época. Nesse sentido, chama a atenção que o autor reproduz informações sobre a composição demográfica estadunidense, mas não se preocupa (talvez pela dificuldade de obter novos textos em razão de sua prisão) com a veracidade dessas informações, repetindo, de certo modo, um “mito” sobre a origem da composição gráfica dos Estados Unidos.
5. “Mistério de Nápoles” – o autor relembra as observações de Goethe sobre Nápoles, nas quais este “põe fim” a lenda do ‘lazzaronismo’ orgânico dos napolitanos, afirmando que eles são, na verdade, muito laboriosos. Entretanto, Gramsci aponta que é necessário perceber o “resultado efetivo desta laboriosidade: ela não é produtiva e não se destina a satisfazer as necessidades e as exigências de classes produtivas”[5] Grande parte da sociedade de Nápoles gira em torno de grandes proprietários que gastam a renda da terra e da circulação de mercadorias, tendo, contudo, uma pequena indústria “produtiva”. Desse modo, essa estrutura social explica a história da cidade de Nápoles.
Observação do grupo: por meio do “Mistério de Nápoles” o autor foca na produtividade do trabalho e não apenas na questão cultural, mais aparente quando se trata das questões elaboradas por Goethe
6. Segundo Gramsci, ainda não foi devidamente estudada a relação entre a média e a pequena propriedade rural e o restante da sociedade, uma vez que essas propriedades não são de camponeses produtivos, mas de burgueses que a concedem por meio de um alguém pago in natura e em serviços, de modo que existe um grande volume de pequena e média burguesia ‘”pensionistas” e “rentistas”.
7. Outra forma de parasitismo é (desde sua existência) a administração do Estado. O autor critica aqui, em primeiro lugar, os funcionários que relativamente jovens (“com um pouco mais de 40 anos”[6]) e no pleno vigor de suas capacidades laborais, após vinte e cinco anos de serviço público, deixam de se dedicar a quaisquer atividades produtivas, vivendo com sua aposentadoria, enquanto o mesmo não ocorre com os trabalhadores e os camponeses. Gramsci comenta também que um italiano médio se surpreenderia ao saber que um milionário estadunidense permanece em atividade até o último minuto de sua vida consciente.
Observação do grupo: problemas da leitura culturalista do autor, uma vez que entende os comportamentos dos indivíduos primeiramente pela cultura, secundarizando e muitas vezes desvinculando a subjetividade dos indivíduos, que é social, as relações socioeconômicas.
8. O autor aponta que a composição da população italiana já era à sua época debilitada, por causa de fatores como a emigração a longo prazo, a escassa ocupação das mulheres nos trabalhos produtivos, as doenças endêmicas, o estado crônico de desnutrição que atingia o campesinato, o desemprego endêmico e, por fim, a grande massa parasitária. Gramsci afirma, também, que essa situação se verifica em maior ou menor grau em todos os países da Velha Europa e, de modo ainda mais grave, na China e na Índia. Ainda, o autor aponta que, para que a composição demográfica não chegue a um nível catastrófico, devem os desequilíbrios serem corrigidos pela legislação.
Observação do grupo: o autor se revela incerto em relação ao papel desempenhado pela legislação e, em última instância, pelo direito. Muitas vezes Gramsci dá a entender que o direito poderia, por meio de leis, criar novas condutas sociais, sequer se questionando a respeito do funcionamento próprio do direito. Como a legislação poderia “corrigir”, por si só, o alegado desequilíbrio catastrófico da composição demográfica?
9. Como nos Estados Unidos inexistiu uma grande tradição histórica, não há classes parasitárias sedimentadas, o que, nas palavras do autor:
“permitiu uma base sadia para a indústria e, em especial, para o comércio, possibilitando a redução cada vez maior da função econômica representada pelos transportes e pelo comércio a uma real atividade subordinada à produção, ou melhor, a tentativa de incorporar estas atividades à própria atividade produtiva.”[7]
Como havia uma racionalização demográfica, foi mais fácil nos Estados Unidos racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força com a persuasão, o que leva o autor a concluir pela célebre frase, segundo a qual a “hegemonia nasce na fábrica e necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia”[8].
10. Na América, para que fosse possível instaurar as novas condições de trabalho e de processo produtivo, fez-se necessário elaborar um novo tipo de ser humano. Gramsci comenta que não se verificou antes da crise de 1929, salvo de maneira episódica, um florescimento superestrutural, “ou seja, ainda não foi posta a questão fundamental da hegemonia”[9]Outrossim, ressalta que a destruição dos sindicatos estadunidenses nessa época, exigida pelos industriais, tinha um aspecto progressivo, pois tais sindicatos eram na realidade semelhantes ao da Europa do Século XVIII que reivindicavam os “direitos profissionais” contra a liberdade industrial. Por fim, ressaltou que a ausência de uma fase histórica demarcada pela Revolução Francesa deixou as massas populares num estado bruto.
Observação do grupo: Gramsci apresentaria um certo etapismo, ainda que não necessariamente defenda de maneira expressa esse ponto de vista.
Nota 3 – Alguns aspetos da questão sexual
11. Gramsci busca apontar a “obsessão pela questão sexual e o perigo de uma tal obsessão”. O autor inicia sua argumentação ressaltando que “foram os instintos sexuais os que sofreram maior repressão por parte da sociedade em desenvolvimento” por tentativas de regulamentações e atribuições de comportamentos contrários à “natureza humana”. Segundo o autor, a sexualidade aparece como função reprodutora e como ‘esporte’: “o ideal ‘estético’ da mulher oscila entre a concepção de ‘reprodutora’ e de ‘brinquedo’”[10]. Tal função ‘esportiva’ seria evidente em provérbios como “o homem caça, a mulher provoca”.
Observação do grupo: autor aqui (nesta nota) “se perde” ao tentar criticar os aspectos de uma dominação sexual e de sua relação com a hegemonia. Sua visão, machista e moralista, critica uma suposta “natureza humana” da sexualidade, enxergando esta como barbárie animal. Apesar de parecer criticar a relação hegemônica, o autor parece repetir preconceitos de sua época, ainda bastantes presentes hoje.
12. O autor destaca que a função econômica da reprodução deve ser apreendida não só pela perspectiva da sociedade em seu conjunto, mas também como fato molecular no interior das famílias, entendidas como aglomerados econômicos. Ainda, os progressos da higiene, responsáveis por elevar a vida humana média, colocam a questão sexual como aspecto basilar da questão e econômica, “aspecto capaz de colocar, por seu turno, complexos problemas do tipo superestrutural”[11] (de hegemonia). Baixo índice de natalidade dos países europeus é inflado pelas massas trabalhadoras imigrantes estrangeiros que modificam a base da sociedade, ocupando predominantemente as profissões menos qualificadas.
13. A vida urbana e industrial exige um aprendizado geral, ou seja, um processo de adaptação psíquico corporal do ser humano, que necessita ser adquirida (não é natural), razão pela qual a baixa natalidade exige um constante e elevado gasto com tal aprendizado.
14. Segundo o autor, “A mais importante questão ético-civil ligada à questão sexual é a formação de uma nova personalidade feminina: enquanto a mulher não tiver alcançado não apenas uma real independência em face do homem, mas também um novo modo de conceber a si mesma e a seu papel nas relações sexual, a questão sexual continuará repleta de aspectos mórbidos e será precioso ter cautela em qualquer inovação legislativa. Toda crise no campo sexual traz consigo um desregramento ‘romântico’, que pode ser agravado pela abolição da prostituição legal e organizada”[12].
Por causa das questões expostas, o autor conclui pela dificuldade em se criar uma ética sexual adequada aos novos métodos de trabalho. Gramsci ainda comenta que Ford, por exemplo, se interessa pelas relações sexuais de seus empregados e pelas suas relações familiares, mas a aparência de “puritanismo” não deve ser confundida com seu interesse de classe.
Observação do grupo: Gramsci se refere ao agravamento do desregramento “romântico” com a abolição da prostituição legal e organizada, entendendo que as "regulares" entre homens e mulheres “definhariam” caso não houvesse um controle do impulso masculino pelo sexo, que seria primordialmente exercido por meio da “prostituição legal e organizada”. Ou seja, nesse trecho o autor defende uma concepção segundo a qual a “prostituição legalizada” desempenharia um papel fundamental na manutenção da instituição familiar, pois ela “apaziguaria” o impulso sexual do homem, impedindo que a família seja desfeita em razão desse “impulso sexual” do homem, que seria “natural” e “incontrolável”.
Nota 11 – Racionalização da produção e do trabalho
16. Gramsci introduz a nota argumentando que a “militarização do trabalho” proposta por Trotski se baseou numa preocupação justa, mas indicou uma solução equivocada. O princípio de coerção direta e indireta na organização da produção e do trabalho, segundo o Gramsci, seria acertado. Entretanto, a forma, o modelo militar, era equivocada. O autor ressalta ainda que Trotski demonstrou interesse pelo fenômeno do americanismo.
Observação do grupo: o autor, embora afirme que discorde da “militarização do trabalho” proposta por Trotski, não desenvolve o argumento, apenas o utiliza como ponto de partida para discorrer acerca da racionalização dos processos produtivo e laboral.
17. Nos Estados Unidos, a racionalização do trabalho e o proibicionismo estão intrinsicamente ligados, afinal, o controle da moralidade dos trabalhadores passa a ser uma necessidade do novo método de trabalho. Segundo Gramsci, nunca antes na história foi visto um esforço coletivo, como no caso do americanismo, na criação de um novo tipo de trabalhador, definido por Taylor (com “brutal cinismo”, como ressalta Gramsci) como desenvolver em grau máximo no trabalhador os comportamentos maquinais e automáticos. Na realidade, tal fenômeno de tornar os trabalhadores máquinas, como pontua Gramsci, não é algo novo, uma vez que se iniciou com o “próprio nascimento do industrialismo”[13], mas se trata de um processo mais intenso e brutal em que ocorrerá uma seleção forçada: uma parcela da velha classe trabalhadora será eliminada do mundo do trabalho e, talvez, do mundo todo.
Observação do grupo:o autor destaca acertadamente o papel ideológico do proibicionismo, que não existiu para afastar o álcool dos seres humanos, mas, na realidade, intensificar a formação de um “novo trabalhador”, totalmente subordinado às técnicas produtivas tayloristas e a seu ritmo acelerado e degradante de trabalho.
18. Industriais como Ford nãose preocupam com nenhum traço de “humanidade” ou “espiritualidade” do trabalhador, que só poderiam se realizar na criação produtiva, máxima no artesão. É verdade que as iniciativas “puritanas” tentam conservar fora do trabalho um equilíbrio psicológico mínimo ao trabalhador. Entretanto, esse equilíbrio precisa ser proposto pelo próprio trabalhador e não imposto a ele de fora, sob risco de ser demasiadamente artificial. Os chamados “altos salários” desempenharam um papel primordial nesse equilíbrio, uma vez que se constituiu em instrumento para selecionar “trabalhadores qualificados adaptados ao sistema de produção e de trabalho e para mantê-los de modo estável.”[14] Mas o alto salário poderia levar o trabalhador a deixar de trabalhar ou fazer coisas que prejudicassem sua atividade laboral, como o consumo de álcool em excesso. Daí porque o proibicionismo, afinal, o álcool era entendido como “o mais perigoso agente de destruição das forças produtivas”[15]
19. Outra questão ligada ao álcool é a questão sexual, uma vez que o abuso das “funções sexuais” seriam, depois do alcoolismo, os inimigos mais poderosos da energia dos trabalhadores. Mais uma vez, Gramsci comenta que Ford vigiava a vida privada de seus empregados, controlando, inclusive, como estes gastavam seus salários. Outrossim, o autor chama atenção a um ponto que considera o mais notável do americanismo em relação ao alcoolismo e às questões sexuais, qual seja, a separação formada entre a moralidade dos trabalhadores “e aquela de outras camadas da população”[16]. Quem consumia o álcool contrabandeado durante a lei seca? Afinal, o álcool se tornou, nesse período, uma mercadoria de grande luxo que nem mesmo os trabalhadores que ganhavam altos salários tinham condições de comprar. No mesmo sentido, “a ‘caça à mulher’ exige bastante ócio”. Nas palavras do autor:
“Revela-se claramente que o novo industrialismo quer a monogamia, quer que o homem-trabalhador não desperdice suas energias nervosas na busca desordenada e excitante da satisfação sexual ocasional: o operário que vai para o trabalho depois de uma noite de ‘orgias’ não é um bom trabalhador; a exaltação passional não pode se adequar aos movimentos cronometrados dos fetos produtivos ligados aos mais perfeitos automatismos.”[17]
Observação do grupo: novamente a questão sexual é tratada pelo autor de maneira superficial. Não tece efetivamente críticas à “caça” dos homens pelas mulheres, mas apenas ressalta que essa atividade necessitaria de um tempo, que teria sido tolhido dos trabalhadores pelas jornadas de trabalho taylorista intensivo.
20. Na sequência, o autor mais uma vez comenta que o povo estadunidense tem uma “vocação laboriosa”, não inerente apenas às classes trabalhadoras, mas também às classes dirigentes, diferença que existe pela falta de “tradição”, o que não ocorre, como vimos, na Europa (classes parasitárias como “resíduos passivos” que resistem ao americanismo). Nos Estados Unidos, além disso, começa a surgir uma defasagem de moralidade que criam margens de passividade social cada vez maiores. Aqui o autor aponta para a suposta diferenciação entre, num casal heteroafetivo, o marido como “homem-industrial” e a esposa e filhas como “mamíferas de luxo”. Fenômenos como esse, característicos das classes dominantes, tornam cada vez mais difícil a coerção sobre os trabalhadores para adequá-los às necessidades da grande indústria (ou seja, uma certa hipocrisia moral que torna a coerção mais difícil).
Observação do grupo: no trecho, o grupo entendeu que o autor discorda do machismo explicitado no casal heteroafetivo burguês, contudo, não se opõe frontalmente à ideologia que sustenta essa suposta diferenciação entre o “homem-industiral” e as, em suas palavras, de “mamíferas de luxo”. Apesar da misoginia em sua afirmação, de fato a grande divergência entre os hábitos burgueses – que não é aqui reivindicada nos termos que sustentou Gramsci– e os hábitos dos trabalhadores torna cada vez mais difícil a coerção sobre os trabalhadores para adequá-los às necessidades do trabalho capitalista.
Nota 12 – Taylorismo e mecanização do trabalhador
21. Nesta nota, Gramsci tece alguns comentários acerca do taylorismo e da separação que este determina entre o trabalho manual e o “conteúdo humano” do trabalho. Segundo o autor, pode-se observar que em algumas profissões o processo de adaptação à mecanização é mais árduo (exemplos: estenotipia, datilografia, etc.), pois é difícil que o trabalhador consiga “esquecer” (ou seja, não refletir sobre) o conteúdo material do texto que reproduz, para fixar apenas no agrupamento de letras ou siglas. Segundo o autor, “o interesse do trabalhador pelo conteúdo intelectual do texto mede-se por seus erros, ou seja, é uma deficiência profissional; sua qualificação é avaliada precisamente por seu desinteresse intelectual, isto é, por sua mecanização.”[18]
22. Por mais difícil que seja esse esforço de se dissociar do conteúdo humano do trabalho, segundo Gramsci, ele “é feito e não destrói espiritualmente o homem”[19]. Quando a adaptação ao novo tipo de trabalho termina, o cérebro humano, na realidade, libertou-se, ficando desimpedido para outras funções. Para exemplificar, Gramsci argumenta que, do mesmo modo que andamos sem pensar – podendo pensar no que quisermos –, podemos, após a adaptação ao novo tipo de trabalho, pensarmos em outras coisas enquanto trabalhamos. Os industriais estadunidenses, segundo Gramsci, “compreenderam que ‘gorila amestrado’ é uma frase, que o operário ‘infelizmente’ continua homem e até mesmo que, durante o trabalho, pensa mais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar, pelo menos quando superou a crise de adaptação e não foi eliminado: e não só pensa, mas o fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, e que compreenda que se quer reduzi-lo a gorila amestrado, pode levá-lo a um curso de pensamentos pouco conformistas.”[20]
Observação do grupo: trecho gerou polêmica em nosso grupo. Por um lado, foi dito que realmente para certos tipos de trabalho faz-se necessário abstrair do conteúdo. Entretanto, por outro lado, foi sustentado que Gramsci teria uma visão idealista e distorcida da classe trabalhadora por acreditar que, graças à dinâmica taylorista, o trabalhador teria, por exemplo, mais tempo para pensar acerca da revolução socialista e de sua organização como classe, uma vez que não teria que pensar para trabalhar. Para uma parte do grupo, o taylorismo, ao esvaziar o trabalho de conteúdo, constituiria na verdade um óbice à consciência dos trabalhadores.
Nota 13 – Os altos salários
23. Altos salários como forma transitória de retribuição, afinal, a adaptação aos novos métodos de trabalho não pode ser realizada simplesmente por meio da coação social, pois provocariam, cedo ou tarde, graves problemas para a saúde física e psíquica dos trabalhadores, o que resultaria num desemprego endêmico. Em situações “normais”, ou seja, quando não há guerras ou grandes crises, a coação é um meio demasiadamente custoso ao Estado. Exatamente por isso, sustenta o autor, que a coerção deve ser combinada com a persuasão e com o consenso, que, por sua vez, podem ser obtidos por meio de uma retribuição capaz de melhorar a qualidade de vida de alguns trabalhadores selecionados (adaptados ao novo modo de trabalho).
24. Assim que houver a generalização do novo tipo de trabalhador, os autos salários desaparecerão, uma vez que serão limitados pelo desemprego (exército industrial de reserva). Além disso, o autor pontua que as indústrias que pagam altos salários gozam do monopólio que, segundo Gramsci, seria limitado com o transcorrer do tempo.
Observação do grupo: o aporte de Gramsci, segundo o qual os altos salários são temporários, é imprescindível para a compreensão da hegemonia fabril e de suas formas indiretas e não coercitivas.
25. O que seriam os grandes salários? Altos quando comparados a quais salários? As dificuldades em responder tais questionamentos são ligadas ao fato de que o quadro de operários da Ford é mito instável para que seja possível calcular uma média racional e compará-las com outras indústrias. Essa rotatividade dos trabalhadores demonstra que “as condições normais de concorrência entre os operários (diferença de salários) só atuam dentro de certos limites: não atua o diferente nível entre as médias salariais e não atua a pressão do exército de reserva dos desempregados”[21]. Desse modo, deve-se analisar a real origem dos altos salários e da alta rotatividade de empregados da Ford, qual seja, a exigência de uma qualificação de um novo tipo, que as demais empresas ainda não exigiam e que resultavam numa forma de consumo e degradação da força de trabalho ainda maior. Exatamente por isso, se o fenômeno do fordismo for generalizável, deve-se combate-lo com a força dos sindicatos e da legislação.
Observação do grupo: mais uma vez o autor incorre no erro de superdimensionar a força da legislação, não compreendendo sua função e sua gênese dentro do modo de produção capitalista, afinal, pretendia combater a alta rotatividade dos empregados da Ford equivocadamente por meio da legislação, a qual o autor nos dá a impressão que detém uma” neutralidade”.
26. Para Gramsci, o fordismo é generalizável desde que ocorram mudanças sociais, nos costumes e nos hábitos individuais, que não podem acontecer por meio da coerção, mas, conforme já dito, necessitam de uma combinação entre coerção e persuasão, sob a forma também de altos salários.
27. Considerando a dificuldade que é adaptar o ser humano ao novo modo de trabalho, construir um quadro de funcionários não é uma tarefa fácil, razão pela qual seria antieconômico dispersar o quadro de funcionários já constituído. Com essa política de altos salários para alguns quadros, formam-se também as aristocracias privilegiadas no seio da classe trabalhadora.
Observação do grupo: a análise de Gramsci neste trecho acerca das chamadas “aristocracias operárias” se coaduna com a análise realizada por outros marxistas como Trotski.
Referências bibliográficas:
BRAGA, Ruy. Introdução. In GRAMSCI, Antonio. Americanismo e Fordismo. São Paulo: Hedra, 2008.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do CárcereVol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006;
LIGUORI, Guido, VOZA, Pasquale (orgs.). Dicionário Gramsciano (1926-1937). São Paulo: Boitempo, 2018.
Notas:
[1]GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere – Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 242.
[2]Ibidem, p. 242.
[3]Ibidem, p. 243.
[4]Ibidem, p. 243.
[5]Ibidem, p. 244.
[6]Ibidem, p. 245.
[7]Ibidem, p. 247.
[8]Ibidem, p. 247-248.
[9]Ibidem, p. 248.
[10]Ibidem, p. 250.
[11]Ibidem, p. 251.
[12]Ibidem, p. 241.
[13]Ibidem, p. 266
[14]Ibidem, p. 267.
[15]Ibidem, p. 267.
[16]Ibidem, p. 268.
[17]Ibidem, p. 269.
[18]Ibidem, p. 271.
[19]Ibidem, p. 272.
[20]Ibidem, p. 272.
[21]Ibidem, p. 274.
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