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RELATÓRIO - Reunião 02/05/2019 - "A reificação e a consciência do proletariado", Georg Luk

Relatório – Reunião 02/05/2019

Tema: A reificação e a consciência do proletariado


Trata-se de ensaio bastante longo. O presente relatório se ocupa das duas seções iniciais do item I.


Amparada em Marx, a primeira seção expõe a estrutura da mercadoria e suas implicações para o trabalho. A segunda, a divisão do trabalho e suas consequências para as formas de consciência capitalistas.


I – O fenômeno da reificação


1.


Lukács, a partir do Capital, apresenta a mercadoria do seguinte modo: “A essência da estrutura da mercadoria já foi ressaltada várias vezes. Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma ‘objetividade fantasmagórica’” (p. 194).


Note-se que não há menção aos “dois fatores da mercadoria”, valor e valor de uso. E isto trará conseqüências para a análise do autor.


No mesmo parágrafo, temos o objetivo do ensaio: “Nosso objetivo é somente chamar a atenção – pressupondo as análises econômicas de Marx – para aqueles problemas fundamentais que resultam do caráter fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, de outro.” (p. 194).


De início, já esclarece Lukács: “(...)a questão do fetichismo da mercadoria é específica da nossa época, do capitalismo moderno”.


Para analisar esse fetichismo, passa a tecer considerações sobre a mercadoria: “a extensão da troca mercantil como forma dominante do metabolismo de uma sociedade não pode ser tratada como uma simples questão quantitativa (...). A diferença entre uma sociedade em que a forma mercantil é a dominante que influencia decisivamente todas as manifestações da vida e uma sociedade em que ela aparece apenas episodicamente é, antes, uma diferença qualitativa.(...).A diferença qualitativa entre a mercadoria como uma forma (entre muitas outras) do meta­bolismo social dos homens e a mercadoria como forma universal de conformação da sociedade não se mostra somente no fato de a relação mercantil como fenôme­no isolado exercer no máximo uma influência negati­va sobre a estrutura e a articulação da sociedade, mas no fato de essa diferença reagir sobre o tipo e a valida­de da própria categoria. A forma mercantil como forma universal, mesmo quando considerada por si só, exibe uma imagem diferente do que como fenômeno particular, isolado e não dominante.” (grifei – p. 195-197).


Em seguida, relaciona mercadoria e o fenômeno da reificação: “Pois é somente como categoria universal de todo o ser social que a mercadoria pode ser compreendida em sua essência autêntica. Apenas nesse contexto a rei­ficação surgida da relação mercantil adquire uma im­portância decisiva, tanto para o desenvolvimento obje­tivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissão de sua consciência às for­mas nas quais essa reificação se exprime, para as ten­tativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores, para se libertar da ser­vidão da "segunda natureza" que surge desse modo. Marx descreve o fenômeno fundamental da reificação da seguinte maneira:‘O caráter misterioso da forma mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar para os homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres objetivos do produto do trabalho, como qualidades sociais naturais dessas coisas e, consequentemente, também a relação social dos produ­tores com o conjunto do trabalho como uma relação so­cial de objetos que existe exteriormente a eles. Com esse qüiproquó, os produtos do trabalho se tomam mercado­rias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos senti­dos ou serem coisas sociais [...] É apenas a relação social determinada dos próprios homens que assume para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas." (grifei – p. 198-199).


Acima está a descrição do fetichismo da mercadoria. Mas Lukács aponta na mesma descrição o fenômeno da reificação.


Pergunta para debate: fetichismo e reificação coincidem?


Hipótese: Fetichismo parece ser a atribuição de “poderes” à mercadoria. Mas o fenômeno da reificação parece ser bem mais abrangente, como o próprio Lukács descreve no ensaio. Talvez a precisão do texto do Lukács aumentasse se apontasse que características sociais do trabalho Marx descreve no capítulo 1 do Capital. Ali o trabalho é posto como: concreto (como produtor de valores de uso), abstrato (produtor de “valor”, medido por tempo), privado (realizado independentemente uns dos outros) e social (em uma divisão do trabalho articulada). São essas as características sociais elementares que se apresentam na mercadoria, ao menos tal como posta no cap. 1 do Capital. Fizesse isso, talvez pudéssemos indicar com precisão as determinações que conduzem ao fetichismo da mercadoria e, assim, indicá-lo como um caso específico do fenômeno da reificação, que o autor pretende explicar ao longo do texto. Note-se, porém, que o fenômeno da reificação apresentará outras significações ao longo do texto, como, por exemplo, quando se diz que o trabalhador é reificado em razão de sua força de trabalho ser posta como mercadoria, como coisa, que ele possui. Aqui, a própria pessoa se torna coisa. No que descrevemos o fetiche da mercadoria, é a atividade trabalho e a relação entre os produtores que se coisificam.


Debate: “ O debate sobre fetiche x alienação se refere à identificação de um fenômeno objetivo e sua repercussão subjetiva.


- Alienação é uma noção jurídica hegeliana de exteriorização. A força de trabalho é sua, mas a propriedade é transferida para um terceiro. E fetichismo como aparência social da relação entre coisas, que coloniza tudo.


- N´O Capital tudo isso será substituído pela noção de subsunção real do trabalho ao capital.


- Nos Manuscritos não há diferença entre trabalho e força de trabalho. Isso gera problemas. O cerne da sociabilidade é a subjetivação.


- “Estranhamento” foi uma palavra introduzida nas edições da obra de Marx a partir da tradução de Ranieri. E isso gera muitos debates.


- Segundo M. Naves, introduzir reificação n´O Capital teria sido uma tentativa da Boitempo de “luckasianizar” o Marx.


- Mas independentemente disso, no Marx há o uso de duas palavras diferentes para tratar desse tema.


- Fetichismo e reificação são palavras diferentes no Luckács.


- No Lukács, o par fetichismo/coisificação parece funcionar como alienação/estranhamento, segundo uma leitura do jovem Marx: o primeiro termo indica o processo objetivo de transferência dos caracteres sociais para as coisas; o segundo indica a repercussão daquele processo objetivo na subjetividade.


- A diferença entre reificação (que vem do latim res, que significa coisa) e coisificação é realmente um debate?Gramaticalmente são iguais.


- Mas usar reificação é uma escolha por uma leitura de fetiche, que desemboca em reificação. Mais que uma palavra, trata-se de um conceito, que direciona uma determinada leitura. Reificação não está n´O Capital, e exclui o sujeito. Reificação em Luckács é a colonização de todos os aspectos da vida.


- Exclui o sujeito porque quando você diz que a reificação significa que tudo se torna coisa, no fundo você está ignorando que nossas relações não são cada vez mais marcadas pela coisa, mas pelo sujeito. E se você deixa o sujeito de lado, você deixa de lado determinações fundamentais da relação capitalista, como a liberdade, a igualdade, etc. Porque o fato de que as relações sociais sejam coisa não nos diz muito, mas sim a subjetivação das relações (dica de leitura: “O fetichismo em Marx”, de Antonin Artaud).


- Todo mecanismo de fetiche passa por uma coisificação (atribuir poderes que são sociais a uma coisa); outra coisa é a repercussão disso na subjetividade. É um outro processo (que pressupõe o primeiro). Para Luckács a reificação se referiria mais ao segundo processo, e o fetiche ao primeiro.


- A coisificação (fetiche) existe e convive com a subjetivação. Mas prevalece a subjetivação (tornar-se sujeito).” (fim do debate neste ponto)


Lukács refere-se ao trecho acima do seguinte modo: “Desse fato básico e estrutural é preciso reter sobre­tudo que, por meio dele, o homem é confrontado com sua própria atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o domina por leis próprias, que lhes são estranhas.” (199)


A partir dessa “objetividade”, Lukács passa a desenvolver seus argumentos em torno do “trabalho abstrato”:


“A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o sub­jetivo, uma abstração do trabalho humano que se obje­tiva nas mercadorias. (...) Objetivamente, a forma mercantil só se torna possível como forma da igualda­de, da permutabilidade de objetos qualitativamente di­ferentes pelo fato de esses objetos - nessa relação que é a única a lhes conferir sua natureza de mercadorias -serem vistos como formalmente iguais. Desse modo, o princípio de sua igualdade formal só pode ser funda­do em sua essência como produto do trabalho humano abstrato (portanto, formalmente igual). Subjetivamen­te, essa igualdade formal do trabalho humano abstrato não é somente o denominador comum ao qual os dife­rentes objetos são reduzidos na relação mercantil, mas torna-se também o princípio real do processo efetivo de produção de mercadorias.” (200).


Aparentemente, “objetivo” aqui significa “relativo aos objetos”; subjetivo, “aos indivíduos”, “aos seres humanos”.


Assim, em seguida, Lukács passa a descrever como se organiza o processo de trabalho sob impertivo do trabalho abstrato.


“Se perseguirmos o caminho percorrido pelo de­senvolvimento do processo de trabalho desde o arte­sanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos urna racionali­zação continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e in­dividuais do trabalhador. Por um lado, o processo de trabalho é fragmentado, numa proporção continuamen­te crescente, em operações parciais abstratamente racio­nais, o que interrompe a relação do trabalhador com o produto acabado e reduz seu trabalho a uma função es­pecial que se repete mecanicamente. Por outro, à medi­da que a racionalização e a mecanização se intensificam, o período de trabalho socialmente necessário, que for­ma a base do cálculo racional, deixa de ser considerado como tempo médio e empírico para figurar como uma quantidade de trabalho objetivamente calculável, que se opõe ao trabalhador sob a forma de uma objetivida­de pronta e estabelecida.” (p. 201).



Note-se que Lukács menciona a “racionalização crescente” com uma característica da organização do processo do trabalho capitalista. Sugestão para debate: o que significa “racionalização” nesse contexto? O autor retoma mais à frente o emprego da expressão.


Uma observação: Lukács, embora se ampare no Capital, passou da análise da mercadoria diretamente para a análise do processo do trabalho. Com isso, deixou para trás diversas outras análises, como a do dinheiro e de sua transformação em capital; a do salário também parece importante. Isto pode trazer consequências para sua análise. Especialmente a partir do capítulo 2 do Capital, é possível se apropriar das determinações que tornam indivíduos “sujeitos jurídicos”, “pessoas”, proprietários privados. E entender as causas da individualização parece ser algo importante para Lukács, conforme mais à frente, no ensaio, ele passa a tratar da especialização das atividades, a atomização dos “indivíduos” e do próprio “direito moderno”.Talvez a matéria seja ainda mais relevante se considerarmos que o autor tratará mais à frente da “consciência de classe”.


Prossegue o autor:“(...) o mais importante é o princípio que assim se impõe: o princípio da racionalização baseada no cálculo, na possibilidade do cálculo. As modificações deci­sivas que assim são operadas sobre o sujeito e o objeto do processo econômico são as seguintes: em primeiro lugar, para poder calcular o processo de trabalho, é pre­ciso romper com a unidade orgânica irracional, sempre qualitativamente condicionada, do próprio produto. Só se pode alcançar a racionalização, no sentido de uma previsão e de um cálculo cada vez mais exatos de todos os resultados a atingir, pela análise mais precisa de cada conjunto complexo em seus elementos, pelo estudo de leis parciais específicas de sua produção. Portanto, a racionalização deve, por um lado, romper com a unida­de orgânica de produtos acabados, baseados na ligação tradicional de experiências concretas do trabalho: a racio­nalização é impensável sem a especialização.” (p. 202).


No que diz respeito ao impacto da organização através do “cálculo” sobre os “sujeitos”: “(...)essa fragmentação do objeto da produção implica necessariamente a fragmentação do seu sujeito. Como conseqüência do processo de raciona­lização do trabalho, as propriedades e particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples fontes do erro quando comparadas com o funcio­namento dessas leis parciais abstratas, calculado pre­viamente. O homem não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizadanum sistema mecânico que já encontra pronto e funcio­nando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter.” (p. 204).


Comentário: Ao passar diretamente da exposição do trabalho abstrato para o processo do trabalho, Lukács deixou de mencionar que o capital não se caracteriza especificamente pela produção de mercadorias, nem por uma produção baseada no cálculo, mas pela produção de mais-valia. Sem isso, não há capital. Integra sua própria definição.É a isto que o cálculo serve. Assim, no capitalismo, só há mais especialização se ela torna possível uma maior produção de mais-valia. Assim, mesmo que uma maior especialização da produção seja possível isto não necessariamente será realizado. Mesmo que uma maior especialização seja útil para uma maior produção de mercadorias, isso não necessariamente ocorrerá (vez que, por exemplo, os salários a serem pagos podem ser altos demais). E, por fim, uma maior especialização pode fazer com que se produza menos (como, por exemplo, no caso de ser necessário muito tempo para reunir peças produzidas em locais diferentes). Ao não se mencionar que o cálculo e, por consequência, a especialização do trabalho servem à produção de mais-valia, o texto deixa sem uma explicação determinada a causa de uma maior ou menor especialização. Este é o “prejuízo” de se passar diretamente do trabalho abstrato para o processo de trabalho.


Debate: “- É a partir do que define a relação capital (produção de mais valia) que devemos olhar o processo de especialização do trabalho. Por isso ela não é um princípio automático, ela funciona (ou não) sob a batuta do capital (valor que se valoriza a si mesmo).


- O texto do Luckács não menciona o conceito de capital, por isso não aparece neste trecho do ensaio em que fala de racionalização.


- Embora se trate de um ensaio, deveria ter tratado com rigor o caminho do abstrato ao concreto de Marx.


- Segundo o autor, conforme aparece em outros trechos do ensaio e do livro, nessa racionalização e fragmentação é que se encontra a perda da totalidade. A verdade é fragmentada e sua ciência também (à diferença da ciência proletária).


- Se tomarmos a especialização como algo em si perdemos a compreensão do que é capital, porque o trabalhador abstrato do capital circula de forma livre (então prescinde de especialização, e muitas vezes tem que combatê-la). O trabalhador abstrato pode assumir qualquer trabalho, trabalhos equiparados.


- O verdadeiro trabalhador/produtor é o trabalhador coletivo. O indivíduo fragmentado, individual, se entendido como produtor de mercadoria, pode ser um indício de uma leitura humanista.” (fim do debate neste ponto)


Prossegue Lukács, agora relacionando o processo de trabalho a uma atitude contemplativa dos indivíduos: “Como o processo de trabalho é progressivamente racionalizado e mecanizado, a falta de vontade é reforça­da pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu caráter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa. A atitude contemplativa diante de um processo mecanicamente conforme àsleis e que se de­senrola independentemente da consciência e sem a in­fluência possível de uma atividade humana, ou seja, que se manifesta como um sistema acabado e fechado, transforma também as categorias fundamentais da ati­tude imediata dos homens em relação ao mundo (...)” (p. 204).


Comentário: “vontade” aqui parece ser algo como “iniciativa”, “disposição”.


Ainda sobre a gênese da atitude contemplativa: “(...) Nesse ambiente em que o tempo é abstrato, minuciosamente mensurável e transforma­do em espaço físico, um ambiente que constitui, ao mes­mo tempo, a condição e a conseqüência da produção especializada e fragmentada, no âmbito científico e me­cânico, do objeto de trabalho, os sujeitos do trabalho devem ser igualmente fragmentados de modo racio­nal. Por um lado, seu trabalho fragmentado e mecâni­co, ou seja, a objetivação de sua força de trabalho em relação ao conjunto de sua personalidade - que já era realizada pela venda dessa força de trabalho como mercadoria -, é transformado em realidade cotidiana durável e intransponível, de modo que, também nesse caso, a personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com sua própria existência, par­cela isolada e integrada a um sistema estranho.” (grifei - 205).


Sobre a “atomização” dos indivíduos: “(...)Por ou­tro, a desintegração mecânica do processo de produção também rompe os elos que, na produção "orgânica", religavam a uma comunidade cada sujeito do trabalho.Também a esse respeito, a mecanização da produção faz deles átomos isolados e abstratos, que a realização do seu trabalho não reúne mais de maneira imediata e orgânica e cuja coesão é, antes, numa medida conti­nuamente crescente, mediada exclusivamente pelas leis abstratas do mecanismo ao qual estão integrados.” (grifei - p. 206).


Comentário: mesmo na manufatura, os indivíduos já eram “átomos isolados”, talvez não completamente abstratos (vez que sua força de trabalho ainda não era apêndice da máquina). A mecanização certamente aprofunda esse processo. E eles eram já “isolados” porque se integravam como proprietários privados de suas respectivas forças de trabalho, conforme Marx demonstra quando trata da manufatura.


Arremata Lukács, a respeito da atomização dos indivíduos: “A separação do produtor dos seus meios de produção, a dissolução e a desagregação de todas as unidades originais de produção etc., todas as condi­ções econômicas e sociais do nascimento do capitalis­mo moderno agem nesse sentido: substituir por rela­ções racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as relações humanas. ‘As relações sociais das pessoas em seu trabalho’, diz Marx a propósito das sociedades pré-capitalistas, ‘aparecem de todo modo como suas próprias relações pessoais, e não disfarçadas em relações sociais entre coi­sas, entre produtos do trabalho’.” (p. 207).


Comentário: Talvez serem “pessoais” as relações não signifiquem ser mais “transparentes”...


2.


A partir de agora, adentraremos como o processo de reificação do trabalho oculta o fundamento do “movimento social das coisas” e suas implicações para a construção das diversas formas de consciência da sociedade capitalista.


Sobre o “capital mercantil, função do dinheiro como tesouro ou como capital financeiro etc” (210): “(...) Para a consciência reificada, es­sas formas do capital se transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da sua vida social, jus­tamente porque nelas se esfumam, a ponto de se torna­rem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as relações dos homens entre si e com os objetos reais, destinados à satisfação real de suas necessidades. Tais relações são ocultas na relação mercantil imediata.” (211).


Para ilustrar seu argumento, Lukács toma como exemplo o funcionamento do capital financeiro: “Na fórmula D-D’, temos a forma não-conceitual do ca­pital, a inversão e a coisificação das relações de produção na mais alta potência: a forma portadora de juro, forma simples do capital que tem como condição de sua própria reprodução a capacidade do dinheiro, ou seja, da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independentemente da reprodução - mistificação do ca­pital sob sua forma mais gritante. Para a economia vul­gar, que quer representar o capital como fonte autô­noma e de criação do valor, essa forma é naturalmenteabençoada, pois nela a fonte do juro não é mais reco­nhecida, nela o resultado do processo capitalista de pro­dução - separado do próprio processo - adquire uma existência autônoma." (p. 212-213).


Agora, o texto dá seu próximo passo.


“Essa separação entre os fenômenos da reificação e o fundamento econômico de sua existência, a base que permite compreendê-los, ainda é facilitada pelo fato de que esse processo de transformação deve necessa­riamente englobar o conjunto das formas de manifesta­ção da vida social, para que sejam preenchidas as con­dições de uma produção capitalista com pleno rendi­mento. Assim, o desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse à sua estrutura, um Estado correspondente, entre outras coisas. A semelhança estrutural é, de fato, tão grande que nenhum historiador realmente perspi­caz do capitalismo moderno poderia deixar de consta­tá-la.” (214).


Comentário: o porquê específico de “esse processo de transformação” “dever englobar o conjunto das formas de manifestação” é o que não sabemos. Como ele não deduz o sujeito de nenhum lugar, ele fica impedido de analisar as formas de consciência e o surgimento do Estado em sua origem.


Após citar uma primeira vez Weber, Lukács o cita novamente, talvez revelando indiretamente uma de suas fontes de análise: "A empresa capitalista moderna baseia-se interna­mente sobretudo no cálculo. Para existir, ela precisa de uma justiça e de uma administração, cujo funcionamen­to também possa ser, pelo menos em princípio, calcula­do racionalmente segundo regras gerais sólidas, tal como se calcula o trabalho previsível efetuado por uma má­quina.” (Weber apud Lukács, p. 215).


Sobre o Estado burocrático capitalista: “(....)o processo que ocorre aqui é muito semelhante ao desenvolvimento econômico mencio­nado acima, tanto em seus motivos como em seus efei­tos. Aqui se efetua igualmente uma ruptura com os mé­todos empíricos, irracionais, que se baseiam na tradição e são talhados subjetivamente na medida do homem que atua, e objetivamente na medida da matéria con­creta, na jurisprudência, na administração etc. Surge uma sistematização racional de todas as regulamenta­ções jurídicas da vida, sistematização que representa, pelo menos em sua tendência, um sistema fechado e que pode se relacionar com todos os casos possíveis e imagináveis.” (216).


Continua: “O problema da burocracia moderna só se torna ple­namente compreensível nesse contexto. A burocracia implica uma adaptação do modo de vida e do trabalho e paralelamente também da consciência aos pressupos­tos socioeconômicos gerais da economia capitalista, tal como constatamos no caso do operário na empresa particular. A racionalização formal do direito, do Esta­do, da administração etc. implica, objetiva e realmente, uma decomposição semelhante de todas as funções so­ciais em seus elementos, uma pesquisa semelhante das leis racionais e formais que regem esses sistemas par­dais, separados com exatidão uns dos outros, e subjeti­vamente implica, por conseguinte, repercussões seme­lhantes para a consciência, devidas à separação entre otrabalho e as capacidades e necessidades individuais daquele que o realiza; implica, portanto, uma divisão semelhante, racional e humana, do trabalho em relação à técnica e ao mecanismo tal como encontramos na em­presa.” (219-220).


Após relatar mais um pouco como o fenômeno da reificação determina fenômenos além da produção, Lukács aponta para os limites da racionalização, seja na produção, seja para além dela:


“No entanto, essa racionalização do mundo, apa­rentemente integral e penetrando até o ser físico e psí­quico mais profundo do homem, encontra seu limite no caráter formal de sua própria racionalidade. Isto é, embora a racionalização dos elementos isolados da vida e o conjunto de leis formais dela resultante se adaptem facilmente ao que parece constituir um sistema unitário de "leis" gerais para o observador superficial, o despre­zo pelo elemento concreto na matéria das leis, desprezo em que se baseia seu caráter de lei, surge na incoerên­cia efetiva do sistema de lei, no caráter contingente da relação dos sistemas parciais entre si e na autonomia relativamente grande que esses sistemas parciais possuem uns em relação aos outros. Essa incoerência ma­nifesta-se de maneira bastante flagrante nas épocas de crise, cuja essência - vista do ângulo de nossas presen­tes considerações - consiste justamente no fato de que a continuidade imediata da passagem de um sistema parcial a outro se rompe, e de que sua interdependên­cia e o caráter contingente de suas inter-relações se im­põem subitamente à consciência de todos os homens.” (p.223-224)

Continua:


“(...) toda a estrutura da produção capita­lista repousa sobre essa interação entre uma necessi­dade submetida a leis estritas em todos os fenômenos isolados e uma irracionalidade relativa do processo como um todo.” (225).


“Essa irracionalidade, esse ‘sistema de leis’ - extre­mamente problemático - que regula a totalidade, que por princípio e qualitativamente é diferente daquele que regu­la as partes, é mais do que um postulado, do que uma condição de funcionamento para a economia capitalis­ta nessa problemática; é, ao mesmo tempo, um produto da divisão capitalista do trabalho.” (p. 227).



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