RELATÓRIO - Reunião 09/05/2019 - "A reificação e a consciência do proletariado", Georg Luk
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Relatório – Reunião 09/05/2019
Tema: A reificação e a consciência do proletariado
I. O fenômeno da reificação
Item 3
1. Continuando a análise da reificação a partir da categoria da totalidade, Lukács inicia o item 3 a firmando que devido à especialização do trabalho, foi perdida a “imagem da totalidade”. Contudo, como essa necessidade – ao menos em termos de cognição/conhecimento – “não pode desaparecer, tem-se a impressão (...) de que a ciência, (...), que permanece igualmente nesse imediatismo, teria despedaçado a totalidade da realidade, teria perdido o sentido da totalidade por força da especialização.” (p. .228-229).
2. Conforme aponta Marx, segundo Lukács, não se deve conceber essa especialização “como se fossem os manuais a imprimir essa separação na realidade e não a realidade a imprimi-la nos manuais”. A especialização e o imediatismo que teria despedaçado a totalidade são, do ponto de vista da consciência reificada, “compreensíveis”. Nas palavras do autor, “a atividade da ciência moderna, cujo método é, tanto sociológica quanto imanentemente, necessário e, portanto, ‘compreensível’.” (p. 229).
3. “(...) quanto mais uma ciência moderna for desenvolvida, quanto mais ela alcançar uma visão metódica e clara de si mesma, tanto mais voltara as costas aos problemas ontológicos de sua esfera e os eliminará resolutamente do domínio de conceitualização que forjou” (p. 229). Assim, quanto mais científica e desenvolvida determinada ciência for, maior é sua chance de se constituir num sistema fechado, para qual “a matéria que ela tem por tarefa conhecer ou seja, seu próprio substrato concreto de realidade, passa sistemática e fundamentalmente por inapreensível.” (p. 229).
[Comentários: Totalidade, para o autor, é se ocupar também do tema do ser social. Ainda, o autor usa a ontologia para fazer uma crítica a Kant, não ultrapassando o horizonte de Hegel.]
4. Exemplificando a questão exposta acima, Lukács retoma o conceito de valor de uso desenvolvido por Marx para criticar a “teoria da utilidade marginal – teoria que parte de comportamentos subjetivos do mercado e dos indivíduos (e não de leis objetivas da produção de mercadorias). Nas palavras do autor: “o ato de troca em sua generalidade formal, que para a ‘teoria da utilidade marginal’, permanece precisamente o fato fundamental, suprime igualmente o valor de uso e cria, assim, essa relação de igualdade abstrata entre materiais concretamente desiguais e até mesmo inigualáveis, dos quais nasce essa barreira. Desse modo o sujeito de troca é tão abstrato, formal e reificado quanto seu objeto.” (p. 230). Ou seja, a ciência burguesa não é capaz de penetrar na sua própria matéria ao mesmo tempo em que toma essa matéria como um dado imutável e eterno. A ciência perde a capacidade de compreender a gênese e a transformação, tornando-se a-histórica.
[Comentários: é o exemplo do autor por excelência para mostrar os limites de Kant; de que é feita só a análise do valor de troca (representação do ser) sem a relação com o valor de uso (essência do ser). Trata-se de uma insuficiência que não constitui a totalidade; relação de essência e aparência.]
5. Conforme Lukács, há uma interação entre o método científico, nascido do ser social de determinada classe, e o próprio ser social dessa classe. (p. 231). Nesse sentido: o “caráter incompreensível da crise e sua racionalidade são, por certo, uma consequência da situação e dos interesses da classe burguesa, mas são também, formalmente, a consequência necessária do seu método econômico” (p. 231-232). Dois aspectos que estão, segundo o autor, em uma “unidade dialética”.
6. O autor, depois de introduzir argumentos de Hilferding para compreender alguns aspectos das crises do modo de produção capitalista (p. 232), retoma as elaborações do livro II d’O Capital segundo as quais o método burguês é incapaz de compreender o valor de uso e o consumo real. Para tanto, Lukács se utiliza de uma longa citação de Marx (p. 233-234).
[Comentário: argumento para justificar o exemplo dado acima]
7. Lukács destaca que “essa incapacidade de penetrar no substrato material real da ciência não [deve] ser imputada ao indivíduo. Ela é, antes, algo que se torna cada vez mais evidente na medida em que a ciência evolui e trabalha com coerência a partir de suas próprias premissas.” (p. 234).
8. Essa incapacidade de penetrar no substrato material é exemplificada pela“jurisprudência, devido à sua atitude conscientemente reificada.” (p. 234). A partir daí o autor comenta que a jurisprudência é incapaz de conhecer o conteúdo qualitativo das relações sociais jurídicas, que aparece como um problema de forma e conteúdo. Em suas palavras: “A luta pelo direito natural e o período revolucionário da classe burguesa partem justamente do princípio de que a igualdade formal e a universalidade do direito (sua racionalidade, portanto) estão em condição de determinar, ao mesmo tempo, seu conteúdo.” (p. 235). Depois de afirmar que o direito burguês é distinto do direito que se apoia nos privilégios, tal como o da Idade Média, o autor sustenta que “A classe burguesa revolucionária recusa ver na existência de uma relação jurídica, em sua facticidade, o fundamento de sua validade.” (p. 235).
[Comentário: trecho ambíguo, porque consegue identificar o objeto da crítica de Pachukanis sobre a igualdade natural, mas deixa de realizar a crítica da forma específica das relações jurídicas. Ao mesmo tempo, parece que o autor reivindica de certo modo essa racionalidade jurídica.]
9. Ante tais argumentos, Lukács reafirma que as categorias formais do direito são incapazes de compreender o conteúdo do próprio direito (p. 235). Além disso, as concepções burguesas do direito, pautadas na “racionalização” e no “cálculo”, segundo o autor, “transforma[m] o surgimento e o desaparecimento do direito em algo juridicamente tão incompreensível quanto a crise para a economia política. (p. 236-237).
10. Criticando Kelsen, Lukács afirma que “O direito continua em ligação estreita com os ‘valores eterno’, o que dá origem a uma nova edição, formalista e mais pobre, do direito natural. E o fundamento real da origem do direito, a modificação das relações de poder entre as classes, tornam-se confusos e desapareceram nas ciências que trata, do direito (...).” (p. 237-238).
[Comentário: o autor “tateia” a ideia de igualdade que Pachukanis trabalha, mas depois faz uma inversão em razão de sua noção de racionalidade ser weberiana - O autor reivindica essa racionalidade contra o positivismo jurídico. Ainda, para o húngaro, o fundamento do direito seriam as relações de poder entre as classes]
11. Somente seria possível a aspiração da totalidade se a filosofia rompesse com as barreiras do formalismo fragmentado, “colocando a questão segundo uma orientação radicalmente diferente e orientando-se para a totalidade material e concreta do que pode ser conhecido, do que é dado a conhecer” (p. 238). “Mas uma modificação real do ponto de vista é impossível no terreno da sociedade burguesa.” (p. 238). Isso porque “na medida em que a conceituação formalista das ciências particulares se torna para a filosofia um substrato imutavelmente dado, afasta-se definitivamente e sem esperança, toda a possibilidade de revelar a reificação que está na base desse formalismo. O mundo reificado (...) aparece como único mundo possível.” (p. 239).
12. Concluindo o item, Lukács afirma que “Ao limitar-se a estudar as ‘possíveis condições’ de validade de suas foras nas quais se manifesta seu ser subjacente, o pensamento burguês fecha a via que leva a uma de colocar os problemas claramente, às questões relativas ao surgimento e desaparecimento, relativas à essência real e ao substrato dessas suas formações.” (p. 239).
II. As antinomias do pensamento burguês
13. Como enuncia o autor, “a filosofia crítica moderna [filosofia kantiana] nasceu da estrutura reificada da consciência” (p. 240).
14. Para Lukács, por causa da estrutura reificada da consciência, diversos problemas se originaram – problemas distintos das tradições filosóficas anteriores. O autor comenta que inclusive a filosofia grega foi afetada pelo fenômeno da reificação da consciência, ainda que de modo qualitativamente diferente, tanto em relação aos problemas como às soluções. A partir disso, Lukács sustenta que é arbitrário, por exemplo, “imaginar descobrir em Platão um precursor de Kant”. (p. 240). Contudo, se isso é “possível” – quer dizer, se há pessoas que fazem tal tipo de interpretação arbitrária –, é porque, por um lado, épocas posteriores fazem usos da herança histórica transmitida respondendo sempre a objetivos próprios e, por outro lado, porque a “filosofia grega, embora tenha conhecido os fenômenos da reificação, não chegou a vivenciá-los como formas universais da totalidade do ser; pelo fato de que tinha um pé nessa e outro numa sociedade de estrutura ‘natural’”. (p. 240-241).
[Comentário: premissa parece um pouco equivocada, pois parte do “nada” para chegar “ao nada”, como se fosse um retorno a uma estrutura natural da sociedade]
Item 1
15. Kant, na Crítica da Razão Pura, no prefácio, empregou a expressão “revolução copernicana”, esclarecendo que esta deveria ser aplicada ao problema do conhecimento. Nesse sentido, Kant, citado por Lukács: “Até agora admitiu-se que todo o nosso conhecimento deveria orientar-se de acordo com os nossos objetos [...] Tentemos, pois, por um momento, ver se não progrediríamos melhor nas tarefas da metafísica, admitindo que os objetos devem orientar-se de acordo com o nosso conhecimento.” (p. 241). Isso significa, segundo Lukács, “não mais aceitar o mundo como algo que surgiu independentemente do sujeito cosgnoscitivo, mas concebê-lo, antes, como o próprio produto do sujeito” (p. 241).
16. De acordo com Lukács, por diversas vias, a questão supramencionada de conceber o mundo como o próprio produto do sujeito perpassa toda a filosofia moderna. Do ceticismo relativo ao método do “penso, logo, existo”, passando por Hobbes, Espinosa e Leibniz, o desenvolvimento segue um caminho cujo centro é a “ideia de que o objeto do conhecimento só pode ser conhecido por nós porque e na medida em que é criado por nós mesmos.” (p. 242).
17. As “guias” e as “medidas de conhecimento” da filosofia moderna foram, em geral, os métodos matemáticos e geométricos, isto é, a construção e a criação “do objeto a partir de condições formais de uma objetividade em geral” (p. 242). Contudo, como ressalta Lukács, esse percurso do entendimento humano levou as pessoas a aceitarem os sistemas formais como se fossem evidentes. Essa aceitação se manifesta de diversas formas nos distintos filósofos. Por exemplo, em Hume, o ceticismo faz com que este coloque em dúvida a capacidade do “‘nosso’ conhecimento em atingir resultados universalmente válidos”. Em Espinosa ou Leibniz, por outro lado, a aceitação dos sistemas formais se mostra como uma “confiança irrestrita na capacidade dessas formas de compreender a essência verdadeira de todas as coisas (...). (p. 243).
[Comentário: O autor repete a crítica realizada por Hegel, na Introdução da Fenomenologia do Espírito, à matemática.]
18. Depois de fornecer esses exemplos, Lukács destaca que não se trata nem sequer de fazer um esboço da história da filosofia moderna, mas “descobrir de maneira indicativa o elo entre os problemas fundamentais dessa filosofia e o fundamento ontológico do qual se destacam suas questões e ao qual se esforçam por voltar para compreendê-los.” (p. 243). Isso deve, segundo o autor, ser descoberto tanto por meio daquilo que a filosofia moderna reconhece ser um problema como por meio do que ela não considera um problema de sua teoria. Nas palavras de Lukács, “(...) a equivalência ingênua e dogmática (mesmo nos filósofos ‘mais críticos’) entre o conhecimento racional, formal e matemático e o conhecimento em geral, de um lado, e o ‘nosso’ conhecimento, de outro, aparece como o sinal característico de nossa época.” (p. 243).Ou seja, há uma relação entre os conhecimentos filosóficos e determinada época histórica.
19. Segundo Lukács, “todo esse desenvolvimento filosófico [da filosofia moderna – R. M.] efetuou-se em constante interação com o desenvolvimento das ciências exatas, e este, por sua vez, interagia produtivamente com uma técnica que se racionalizava cada vez mais com a experiência do trabalho na produção.” (p. 244).
20. O “racionalismo” existiu de diversas formas nas distintas épocas históricas, sempre tendo como unidade, segundo o autor, a orientação de quais aspectos dos fenômenos poderia ser “apreendido[s], produzido[s] e, portanto, dominado[s], previsto[s] e calculado[s] pelo entendimento.” (p. 245). As diferenças desses “racionalismos” advêm dos materiais a que ele se aplica e do papel que lhe é atribuído. A “novidade” do “racionalismo moderno” é reivindicar para si mesmo a “descoberta do princípio da ligação entre todos os fenômenos que se opõem à vida do homem na natureza e na sociedade.”, pois todos os sistemas anteriores seriam apenas “sistemas parciais” (p. 245). Assim, os “problemas ‘últimos’” da humanidade persistem num campo irracional inalcançável pelo entendimento. “quanto mais tal sistema racional é ligado a essas questões ‘últimas’ da existência, mais cruamente revela-se seu caráter simplesmente parcial de auxiliar e que não apreende a ‘essência’” (p. 245).
[Comentário: destaque para o trecho “O que há de novo no racionalismo moderno é que ele reivindica para si (...) a descoberta do princípio da ligação entre todos os fenômenos que se opõem à vida do homem na natureza e na sociedade. Em contrapartida, todos os racionalismos anteriores nunca passaram de sistemas parciais”. Lukács novamente critica essa reivindicação a partir da ideia de totalidade, unidade entre o ser e a representação do ser. Compreender o todo e suas partes conjuntamente.]
21. O racionalismo não pode ser corretamente compreendido de maneira abstrata, como se fosse supra-histórico. A diferença entre uma categoria universal e organizações sistemáticas e parciais é qualitativa (p. 246). Quando o sistema parcial é pensado como limitado, “quando o mundo da irracionalidade que o envolve, que o delimita, (...), é representado como independente dele, como incondicionalmente inferior ou superior a ele, isso não origina nenhum problema de método para o próprio sistema racional. Trata-se apenas de um meio para atingir um fim não racional. A situação é totalmente diferente se o racionalismo reivindica a representação do método universal para o conhecimento da totalidade. (...). É o caso do racionalismo (burguês) moderno.” (p. 246).
22. A problemática do racionalismo que reivindica essa representação do método universal para o conhecimento da totalidade se mostra no sistema de Kant pelo conceito de “coisa em si”. O que todos os significados possíveis dentro do sistema kantiano desse conceito possuem em comum é de que cada “coisa em si” representa uma “barreira à faculdade ‘humana’ abstrata”. (p. 247). Entretanto, essas barreiras/limites podem ser muito diferentes entre si, de modo que sua unificação sob o conceito de “coisa em si” é compreensível somente tendo em mente que o conceito se refere a um fenômeno unitário, “a despeito da multiplicidade dos seus efeitos (...)” (p. 247).
[Comentário: problema kantiano de que a coisa em si não é conhecida, mas é unificada a partir de um conceito.]
23. Dois são os complexos de problemas, segundo Lukács, que surgem da “coisa em si” kantiana: i) problemas do conteúdo das formas, da matéria (“no sentido lógico e metódico”), “com as quais ‘nós’ conhecemos o mundo e podemos conhece-lo porque nós mesmos o criamos”; ii) problemas relativos à substância última do conhecimento, que “são necessárias para completar os diversos sistemas parciais numa totalidade (...).” Como ainda ressalta o autor, a CRP nega qualquer possibilidade de respostas ao segundo grupo de problemas. (p. 247).
24. Como aponta Lukács, a dialética transcendental kantiana – que, ao nosso ver, baseia-se, resumidamente,no argumento segundo o qual há ilusões cujaorigem é a própria razão – gira em torno das questões da totalidade por meio de expressões mitológicas de um sujeito unitário, tais como Deus e alma. Criticando Kant, o autor comenta que “A dialética transcendental, com sua separação radical dos fenômenos e dos números [númeno], rejeita toda pretensão da ‘nossa’ razão ao conhecimento do segundo grupo de objetos. Eles são compreendidos como coisas em si, em oposição aos fenômenos cognoscíveis.” (p. 248).
[Comentário: o conceito kantiano de coisa em si se baseia numa perspectiva individualista de realidade, do materialismo sensível mais banal, que não consegue atingir a coisa em si. Conceito de realidade material em Marx é histórico. Uma mesa, uma coisa em si, não pertence ao conceito de realidade marxiano, exceto como um objeto da realidade.]
25. Conforme Kant, citado por Lukács, a “faculdade da intuição sensorial” seria apenas uma receptividade, “uma capacidade de ser afetada de certas maneiras por determinadas ideais [...]. A causa não sensorial dessas ideias é totalmente desconhecida para nós e por isso não podemos intui-la como objeto”. (p. 248). No entanto, como aponta Lukács valendo-se mais uma vez da citação do texto de Kant, para que a capacidade corresponda à sensibilidade, nomeia-se a causa puramente inteligível dos fenômenos em geral como objeto de transcendência. Ou seja, o objeto transcendental, causa de todos os fenômenos em geral, é, nas palavras de Kant, citado por Lukács,“dado em si mesmo antes de toda a experiência.” (p. 248), ou seja, como se fosse possível identificar tal objeto transcendental antes de qualquer experiência.
26. Lukács ressalta que “(...) se o problema da irracionalidade se conclui na impossibilidade de penetrar em qualquer dado com o auxílio dos conceitos do entendimento ou de derivara de tais conceitos, esse aspecto da questão da coisa em si, que de início parecia se aproximar do problema metafísico das relações entre o ‘espírito’ e a ‘matéria’, assume um caráter totalmente diferente e decisivo do ponto de vista lógico e metódico.” (p. 249). Afinal, os fatos empíricos – pouco importando se são ou não puramente sensoriais – devem ser aceitos “como ‘dados’ em sua facticidade ou esse caráter de dado se dissolve em suas formas racionais”, (ou seja, os dados seriam produzidos pelo nosso entendimento e não efetivamente “dados” da realidade)?
27. Segundo o húngaro, Kant já havia explicitado este problema, ao afirmar que a razão pura é incapaz de efetuar uma proposição sintética (o conceito-predicado está fora do conceito-sujeito) e constitutiva do objeto, de modo que seus princípios não podem, segundo Kant citado por Lukács, “ser obtidos diretamente a partir de conceitos, mas sempre de modo indireto pela ligação desses conceitos com algo de inteiramente contingente, a saber, a experiência possível.” (p. 250).
28. “O racionalismo como método universal faz nascer, necessariamente, a exigência do sistema, mas, ao mesmo tempo, a reflexão sobre as condições da possibilidade de um sistema universal. Dito de outro modo, a questão do sistema, formulada conscientemente, mostra a impossibilidade de satisfazer a exigência assim colocada”. (p. 251). Além disso, como destaca o autor, explicitando os motivos pelos quais o “racionalismo” e a matemática caminharam juntos, “A ideia do sistema permite somente compreender porque a matemática pura e aplicada desempenhou constantemente para toda a filosofia moderna o papel de guia e de modelo de método. Pois a relação metódica de seus axiomas com os sistemas parciais e os resultados desenvolvidos a partir deles corresponde exatamente à exigência que o sistema do racionalismo coloca para si mesmo, ou seja, a de que cada aspecto do sistema possa ser produzido, previsto e calculado exatamente a partir de seu princípio fundamental.” (p. 252).
29. O problema da filosofia clássica alemã (incluindo aqui Espinosa, a despeito de este ser holandês), conforme Lukács, é que ela não faz com que desapareçam os “dados”, como se estes estivessem sempre atrás de uma arquitetura complexa das formas racionais do entendimento, mas “preserva no conceito o caráter irracional do dado inerente ao conteúdo desse conceito e se esforça, todavia, superando essa constatação, para erigir o sistema” (p. 252-253). Contudo, para o racionalismo, é impossível que o “dado seja deixado em sua forma de existência e em seu modo de ser”, pois caso assim fosse o dado permaneceria algo contingente à própria razão, não sendo incorporado pelo entendimento (p. 253).
[Comentário: Interessante que Lukács compara os “empiristas” aos “racionalistas”, como “duas faces da mesma moeda”, e aponta que todos reproduzem uma “ode à razão” e que a diferença é só onde a localizam. Todos apresentam parcialmente a sociedade, não vindicam a ontologia.]
30. Diante desse dilema acerca dos fatos, duas alternativas seriam possíveis: a) conteúdo do “irracional” se integra ao sistema de conceitos; b) “sistema se obrigado a reconhecer que o dado, o conteúdo, a matéria, penetram na elaboração, na estrutura e nas relações da forma entre si; penetram, portanto, na estrutura do próprio sistema de maneira determinante.” (p. 253). Ou seja, renuncia-se o sistema como sistema, uma vez que a própria matéria, os dados, penetram nas suas relações, desorganizando sua própria estrutura.
[Comentário: Nesse sentido, a burguesia se destruiria caso pudesse perceber que seu método faz parte de uma parcialidade histórica específica. Embora haja toda uma discussão entre althusserianos e lukacsianos em relação à questão da ciência, ambos em alguma medida reafirmam o argumento de Marx, segundo o qual a ciência é responsável por relevar a essência das relações sociais]
31. Como aponta Lukács, os sistemas filosóficos modernos mais influenciados pela matemática apreendem a irracionalidade do dado como uma tarefa. “Efetivamente, para o método da matemática, toda irracionalidade do conteúdo preexistente parece um estimulo para modificar e reinterpretar o sistema de formas, com o qual foram criadas as correlações até esse momento, de tal modo que o conteúdo, que à primeira vista aparecia como ‘dado’, mostra-se doravante como ‘produzido’”. (p. 254-255).
[Comentário: por isso a engenharia é focada nas relações capitalistas e não a sociologia ou a filosofia. A engenharia, assim como a matemática, cumpre tarefas na manutenção das coisas.]
32. O autor ressalta, em seguida, a diferença entre a filosofia e a matemática, afirmando que a “‘produção’ ininterrupta do conteúdo tem para a matéria do ser um significado bastante diferente do que para o mundo da matemática, que se baseia completamente na construção; que a ‘produção’ significa aqui apenas a possibilidade de compreender os fatos racionalmente, enquanto na matemática, a produção e a possibilidade de compreensão coincidem por completo (p. 256).
33. Lukács aduz que Fichte viu com nitidez o problema da projeção absoluta de um objeto, cujo surgimento não se sabe explicar, e que possui, nas palavras do alemão citado por Lukács “uma obscuridade e um vazio no centro entre a projeção e o projetado.” (p. 256). O autor prossegue afirmando que “(...) não se deve esquecer que o surgimento das ciências particulares, separadas, com precisão uma das outras, especializadas e inteiramente independentes entre si, anto por seu objeto como por seu método, já significa (...) o reconhecimento do caráter insolúvel desse problema” (p. 257), .[do problema percebido por Fichte].
[Comentário: os trechos acima permitem nos questionarmos: por que investir no ensino básico e não no ensino superior? Em razão da fragmentação do saber como forma de garantir a dominação]
34. A renúncia da apreensão da totalidade, do “irracional”, é considerada, para a filosofia, como um progresso critico, que se limita à análise das “condições formais de validade das ciências particulares, que não sofrem interferências nem correções. (...). Quando ela remonta aos pressupostos estruturais da relação e entre a forma e conteúdo, ou ela transfigura o método ‘matematizante’ das ciências particulares em método da filosofia (...), ou destaca a irracionalidade do conteúdo material, no sentido lógico, como fatos ‘últimos’. (...) assim que é feita a tentativa de sistematização, o problema não resolvido da irracionalidade manifesta-se no problema da totalidade. O horizonte que encerra a totalidade aqui criada e suscetível de ser criada é, no melhor dos casos, a cultura (isto é, a cultura da sociedade burguesa), como algo que não pode ser derivado, que deve ser aceito como tal, como ‘facticidade’ no sentido da filosofia clássica.” (p. 258).
[Comentário: A tematização da filosofia é uma opção. O método da matemática é absorvido pela filosofia, tornando-a tematizada pela parcialidade.]
35. Apresentados tais argumentos e seus desenvolvimentos, o autor conclui afirmando que o objetivo neste subitem é mostrar que a burguesia domina “cada vez mais os detalhes de sua existência social, submete-os às formas das suas necessidades, mas, ao mesmo tempo, perde, de maneira igualmente progressiva, possibilidade de dominar intelectualmente a sociedade como totalidade e, desse modo, a sua vocação para liderá-la.” (p. 259).
[Comentário: argumento bastante questionado pelo grupo, uma vez que a burguesia, na realidade, reforça sua dominação ao apresentar a parcialidade para esconder a totalidade.]
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