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Entrevista com BERNARD EDELMAN sobre "A legalização da classe operária", realizada por Alb


Entrevista com BERNARD EDELMAN sobre "A legalização da classe operária"

realizada por Alberto Alonso Muñoz, em 2018 (traduzida)


Por que o senhor não concluiu o tomo II d’ A Legalização da Classe Operária ?


[Risos] Porque, veja, eu escrevi esse livro, não sei, em 1970, algo assim. Uma vez escrito, houve, no entanto, acontecimentos na França. Estava-se perto da eleição de François Mitterand, etc., etc., e, portanto, havia uma espécie de recomposição política na França nessa época. Eu fui tomado por esse movimento. É isso. Me interessei por ele e pouco a pouco escrevi outros livros. É um projeto que eu queria realizar, mas fui sugado por outros acontecimentos. Normalmente eu devia me fazer visível. E ocorreu sempre tudo o que tínhamos previsto.


Seu argumento é contrário ao de muitos marxistas, quando o senhor sustenta que as realizações da classe operárias são derrotas políticas na realidade. O levou o senhor a essa percepção?


Veja, minha ideia é que eu cheguei a isso igualmente enquanto jurista, e, portanto, quando refiz a genealogia, por exemplo, da greve, me dei conta pouco a pouco de que a greve tinha, de alguma maneira, sido domesticada. E que a única maneira — a melhor maneira — de domesticá-la era institucionalizá-la. Portanto, o direito, que não é, por hipótese, na sua formação, um direito proletário, e que o direito era provavelmente a melhor maneira de domesticar a classe trabalhadora dando-lhe um certo número de — como dizer? —possibilidades, dando lhe um certo número de “presentes”, se eu posso falar assim, reconhecendo-lhe, dando-lhe uma duração do trabalho menos importante, férias remuneradas, etc. etc., pouco a pouco a classe trabalhadora se acostumava ao capitalismo, e o direito estava lá para melhor a enquadrar e, de certa forma, abolir nela o espírito revolucionário. Isto é, o direito tinha uma espécie de função de bombeiro, por assim dizer. O direito apaga o fogo da revolução, e, assim, a classe trabalhara pouco a pouco se contenta de que a burguesia lhe dá e esquece todas suas ambições revolucionárias. Enfim, era essa minha tese, se preferir. Minha tese é que o direito era um instrumento ideal para domesticar a classe trabalhadora, dando-lhe por outro lado um certo número de coisas que pouco a pouco a faziam viver um pouco melhor que habitualmente. É isso. Portanto, é o direito enquanto domesticação da classe operária. A institucionalização da classe operária. A institucionalização mata o espírito revolucionário: é isso, em poucas palavras.


Embora constituam derrotas para a revolução, essas reformas não conduziram a melhorias significativas das condições de trabalho, dos trabalhadores de modo geral?


Sim, é inegável. A condição da classe trabalhadora no meio do século XIX era um pouco similar à escravidão. Faziam as crianças trabalhar a partir da idade de seis, sete anos, como na Inglaterra, aliás. As férias remuneradas não existiam. Eles se alojavam de maneira desumana. Estavam próximos da escravidão, sem dúvida. Se preferir, o pós-revolução começa com a IIIª República na França, e esta avança realmente até a Frente Popular [Front Populaire] em 1936, com Léon Brum, que estava na liderança da Frente Popular, quando o Partido Comunista fazia parte do governo. Claro, ela melhorou, inegavelmente, em relação a um século atrás, melhorou muito, realmente. Ela se tornou suportável, não digo aqui extraordinária, mas suportável, enquanto que no século XIX era insuportável. Eles morriam com trinta anos, os que trabalhavam nas minas morriam com trinta, trinta e dois anos, as crianças trabalhavam, eram uma classe de miseráveis. Melhorou, é claro, mas, ao mesmo tempo, essa melhoria foi paga com a morte do espírito revolucionário. O que é compreensível: você dá, você dá, você dá, e a classe popular fica contente que lhe seja dadas coisas, que lhe sejam reconhecidos certos direitos, etc. etc. e, ao mesmo tempo, o fervor revolucionário se apaga pouco a pouco. A verdadeira revolução — pense na Revolução Russa — ocorre quando o povo não tem mais nada para viver e se torna uma questão de sobrevivência, é claro. Ao menos é assim que vejo as coisas, o que lhe ofereço é uma verdade histórica. É a minha maneira de interpretá-la. E, inegavelmente, quando escrevi esse livro, o que me desiludiu completamente, se eu posso dizer assim, é que houve, por parte da esquerda na França (eu falo sempre da França) uma espécie de manipulação consistente em dizer: “Muito bem: a classe trabalhadora inegavelmente obteve direitos, ela obteve uma vida melhor. É uma vitória!” Você entende? É uma manipulação política: a meu ver, o que a classe trabalhadora ganhava em algum lugar não era uma vitória, mas algo inevitável, era isso ou a re-revolução. Eis um pouco qual era o aguilhão das coisas.


Você sabe, esse livro eu não o havia lido mais há quinze ou vinte anos. E quando vocês me pediram um prefácio, eu reli o livro e passei a acreditar, como o expliquei no prefácio, ter dito tudo, e, ao mesmo tempo, antecipado que vinte anos mais tarde é a própria noção de classe operária que entra em xeque. Não existe mais a classe operária. Enquanto conceito, acabou. Na Europa, bem entendido. Na Europa, “classe operária” não quer dizer mais nada. A própria noção de classe. O marxismo está completamente morto. A luta de classes não quer dizer mais nada porque não há mais classes. Mas não sei como isso se passa no Brasil. Eu falo do que conheço, isto é, da Europa. Não há mais classes, e, portanto, não há mais luta de classes. Você observa o que se passa aqui na França com o Código do Trabalho. Há algo como uma tomada de consciência, se quiser. É paradoxal, mas é assim.


[Me perguntou se o conceito de “classe operária” ainda faria sentido no Brasil. Expliquei-lhe que temos no Brasil um fenômeno semelhante de precarização da força de trabalho, que a cobertura de proteção legal foi reduzida tanto jurídica quanto faticamente.]


No Brasil ela ainda faz sentido? Nos Estados Unidos a noção de classe operária não quer dizer nada. Há pobres, há ricos. Muito bem, de acordo. Mas “pobres e ricos” não quer dizer “classe operária” e “capitalismo”.


[Neste momento, ele me perguntou: “Explique-me, por favor, por que meu livro lhes interessa?” Eu respondi que quem poderia melhor responder à questão é o prof. Orione, mas de toda forma, muito rapidamente, porque ele nos permite uma crítica do direito, particularmente da ideologia contida no direito, ao mesmo tempo que uma crítica política ao discurso da “aquisição de direitos”, com o que ele concordou.]


É claro, evidentemente, é isso. Vocês vivem trinta anos de atraso em relação a nós. Estimo que no Brasil, de alguma maneira, como ele poderia ser lido na França na época em que eu o escrevi.


Quando o livro apareceu na França, posso lhe dizer que toda a esquerda, o Partido Socialista, o Partido Comunista, etc., na época me assassinaram! Eu juro a você. Eu trabalhava na época com Althusser na Ecole Normale Supperieure e foi horrível. A direita me amaldiçoou, porque eu punha a nu todas suas manobras, porque são manobras, é claro. Sim, eles reconhecem que estão dando algo para você, dando algo para você e dando algo para você, mas, ao mesmo tempo, estão adormecendo você. [Jogo de palavras: on vous en donne, on vous en donne, on vous en donne (a gente dá algo para você, a gente dá algo para você, a gente dá algo para você), et en vous endort (e a gente faz você dormir, embala você)]


O único jornal que me aplaudiu era um jornal de anarquistas [risos], sim realmente, um jornal de anarquistas [risos] — você se dá conta disso? A CGT [Central Geral dos Trabalhadores] me injuriou, porque, evidentemente, se você preferir assim, eu demolia, eu destruía todos os feitos antigos que o Partido Comunista se atribuía, e que, afinal, não era um partido revolucionário, ainda que fosse um “partido”, no sentido atual desse termo. É assim. Enfim: eu falei cedo demais.


[Pergunto-lhe sobre a possibilidade de visitar o Brasil para um ciclo de palestras. Ele me responde que sua saúde se tornou frágil por conta de um problema cardíaco e não se sente à vontade, pois não sabe como poderia ser atendido se algo ocorresse com ele aqui. Foi extremamente gentil neste momento. Uma pena.]


Neste momento, escrevo um livro sobre a noção de “inimigo”, o que é um inimigo. [Perguntei-lhe as razões de seu interesse.] Fiquei muito impressionado ao ler, há dois ou três anos, o Le Monde Diplomatique , onde havia um artigo sobre a “fabricação do inimigo”. O autor desse artigo, que, aliás, era um general, o começa dizendo que em 1989, no momento da queda do Muro de Berlin, um diplomata soviético se dirige a seus colegas, diplomatas, e lhes diz: “Vamos lhes fazer o pior desserviço: não teremos mais inimigo.” Por que “o pior desserviço”? Por que temos necessidade de um inimigo? Eis a questão. [E a construção da noção de inimigo é concreta... (comentário de Alberto), tanto ideológica quanto jurídica…] Exatamente! Em todos os sentidos do termo.


Então, essa é um pouco minha interrogação: por que não podemos ficar sem um inimigo? [Mencionei a aprovação entre nós da Lei Antiterrorismo e seus efeitos de criminalização dos movimentos sociais e reivindicatórios. Com isso, renasce uma nova imagem do inimigo.] É claro. A questão que me coloco por que temos necessidade do inimigo. Por quê? Num certo sentido, é a repetição das questões que eu me coloco, com abordagens muito diferentes, mas eu estou impressionado hoje em dia em razão desse desejo de ter um inimigo. Me coloquei a questão pelo avesso: se não tivéssemos um inimigo, como nós viveríamos? [A psicanálise teria muito a dizer sobre isso.] Evidentemente me inspirei em Freud, em seu O Mal-estar na Civilização , é claro, e a pulsão de morte, evidentemente. Esse livro nunca esteve tão atual. Esse livro nunca esteve mesmo tão atual. Veja, a bomba atômica, num momento dado, fez que, já que as grandes potências podiam aniquilar totalmente uma à outra, elas não podiam se combater, pois seria o fim, então elas, de alguma maneira, exportaram seu ódio e combatem entre si em outros países, não nos delas.


Como o senhor vê a contradição que o direito, ao mesmo tempo que permite a greve, proíbe a maior parte dos atos que a tornam eficaz?


Veja, a partir do momento em que a greve é enquadrara pelo direito, você tem greves legais e greves ilegais. Então: damos uma satisfação à classe operária, ao reconhecer que ela tem o “direito” de fazer greve, mas, como é um “direito”, a greve é enquadrada. E basta que ela saia do enquadramento jurídico para que possa ser condenada. Isto é, a condenação pode ser o empregador que demitem os grevistas dizendo: “Eles não respeitaram o direito.” Portanto, é enquadrando a greve que aí igualmente se faz uma ação jurídica e, portanto, legal, mas ao mesmo tempo, a greve que transborda a legalidade se torna ilegal e pode ser condenada sem por isso que se reprove uma condenação que foi aceita e talvez enquadrada.


[Perguntei-lhe se poderíamos dizer que há uma aparência do direito de greve, mas uma realidade do não-direito de greve.]


Veja, se preferir, o que tento mostrar é que o direito é ficção. É uma ficção, o direito. O direito reinventa a melhor maneira de se governar numa sociedade dada, tendo ficções. Senão, se o direito não inventasse ficções, não serviria para nada. Veja, esse é o papel mesmo do direito. Escrevi um livro chamado Quand les juristes inventent le réel . [Disse-lhe que gostaríamos de falar sobre esse livro ao final, pois tínhamos a intenção de traduzi-lo.] Vocês leram esse livro?!! [Respondi que sim (por vocês, eu não o li)]. Vocês leram esse livro?!!! Nele eu explico a ficção jurídica, justamente. [Gostaríamos de traduzi-lo.] É um enorme prazer! É uma ideia muito boa. [Antecipei que tivemos problemas com a editora.]


A questão da política na greve parece estar no centro de seu trabalho. [Quando lia a pergunta, ele disse: “Deste meu livro, não do meu trabalho, não são a mesma coisa.”] Por que o sistema jurídico cria a separação entre a greve de defesa dos interesses dos trabalhadores e a greve política, dita “abusiva”?


Veja, a partir do momento em que a classe operária sai do quadro de suas reivindicações de trabalhadores, a partir desse momento ela se vive como classe operária política , e, portanto, ser contestador da política. E como o direito — o direito de greve — reconhece que a greve é lícita no perímetro da defesa dos trabalhadores, mas não de uma classe trabalhadora revolucionária. Portanto, declarando que uma greve é ilícita porque sai do quadro do trabalho, ele proíbe, de alguma maneira, a dimensão revolucionária da greve, ou seja, a reivindicação política da greve. A greve só pode servir para defender o interesse dos trabalhadores, e não o interesse de uma classe operária política. Em duas palavras, é isso.


O senhor vê o direito como um instrumento para a manutenção do status quo, permitindo concessões à classe trabalhadora. [Exatamente.] É um instrumento político. Isso valeria para muito mais do que as questões do trabalho ou não? Penso em quanto é difícil separar o direito da política e vice-versa.


Compreendo bem. Ele quer separar o direito… enfim, ele quer fazer uma distinção entre uma classe operária, de que só se toma os interesses dos trabalhadores, e uma classe operária que pode ter ao mesmo tempo reivindicações políticas, isto é, combater alguma espécie de capital. Pois bem: tem-se seguramente uma classe operária que defende seus interesses trabalhadores e o capital está disposto a concessões, e é esse o papel do direito. Mas se você sai daí, a classe operária vai se tornar… sejam, digamos, greves políticas que são ataques diretos contra o próprio capital. Portanto, é a separação muito clara entre o trabalhador e a reivindicação política de uma classe. É assim que vejo as coisas. É por isso, aliás, que na Constituição francesa de 1946 o direito de greve está inscrito como um “direito do homem”.


[Conto-lhe que para nós também, e que a nossa CF ainda remete para a lei ordinária que a disciplinará.] Seguramente! E então se você não respeita a lei, você é punido! [risos] Deve-se reconhecer o direito de defender seu trabalho, e nada mais. E não ataque, não ataque, o capital que explora você! — sobretudo não faça isso! — porque nesse caso você faz política, e isso é fora da lei, e então, nesse caso: proibido! É assim que o capitalismo se defende. E é o que se chama de “democracia”, afinal, o que você achava? Paradoxalmente. [O Estado de Direito…] Mas é claro, mas é claro…


Você sabe, mitos, para Marx, não nasceram para combater a noção de democracia. Porque isso é o cruel. Ele disse isso. Finge-se dar ao povo sua soberania, é desse jeito… [O Estado de Direito…] Exatamente! Afinal, o que é que você queria? [A noção jurídica de propriedade…] Exatamente, exatamente! É por isso que eu considero que o direito é um observatório ideal, sem dúvida. [Eu também, mais que a economia.] Claro, claro. Sem dúvida. Sem dúvida.


[A próxima questão toma mais no contexto político brasileiro. Se o senhor não se sente à vontade de respondê-la, por favor, fique à vontade.] O Brasil vive um processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Os argumentos jurídicos são sempre discutidos, mas me parece que o que prevalece é a política. Seria esse um exemplo adequado do papel do direito no exercício do poder?


Escute, é a Constituição de vocês que quis isso! [Risos.] Você quer que eu diga o quê? [Risos.] Sabe, eu escutei no rádio uma matéria, na France Culture . Escutei um brasileiro que tinha feito uma análise muito boa de toda a política de Lula. E que disse, na realidade, que Lula deu ao povo, enfim, à classe popular, digamos, à classe pobre, mais possibilidades para viver melhor, etc., destruindo o próprio Brasil. Nós, que na verdade não conhecemos grande coisa, bem, isso me impressionou bastante. E, na realidade, parece que agora, é essa destruição, quinze anos após, que se acontece…


Bem, essa foi a primeira coisa que me impressionou. E a segunda é a destituição de Dilma Rousseff e, de acordo com o que li nos jornais, vocês têm uma classe política completamente corrompida. Aparentemente completamente corrompida. É triste, é triste. Mas estou um pouco enojado… Sabe, guardadas as devidas proporções, mesmo aqui, na Europa, ultrapassamos os níveis de corrupção, passamos até mesmo além deles… De uma certa maneira, são os mesmos processos que estão em obra, claro, claro, com bem menos gravidade, é claro, é claro, pois, bem, vivemos de modo diferente na Europa.


Mas eu não creio mais muito na democracia. [Risos.] Observe o que se passa na França. Há uma ecologia de direita. Acabou tudo isso. Acabou. Acabou. Mas, veja só, o capitalismo não pode mais ser criticado e, portanto, é desse jeito. Veja, eu vivo tudo isso concretamente, na França, na Europa. Eu vi pouco a pouco a morte de toda e qualquer oposição ao capitalismo, ao mercado mundial. Então, isso está traduzido diferentemente segundo os diversos países. É duro, é muito duro.


Eu compreendo perfeitamente. Entre nós é menos duro, mas, enfim, sabe, há fossos de riqueza e de pobreza pavorosos nos Estados Unidos, na Europa. É realmente pavoroso.


[Eu gostaria de lhe colocar uma questão minha. O senhor diz que não há hoje uma oposição ao capitalismo. Não haveria alguma espécie de oposição, não articulada, não organizada, nesses movimentos que surgem de ocupações? Por exemplo, na Ucrânia, nos Estados Unidos (em Seattle), em Londres? Mesmo a resistência em Paris à reforma da legislação do trabalho? Digamos um início de resistência, mesmo sem organização de classe, partido, sindicato, ainda que fraca? Anárquica, talvez ainda, mas alguma espécie de oposição?]


Veja, você está me dizendo que precisamos de ilusões! Eu as deixo para você. Veja, digamos que as sociedades sempre têm necessidade de sonhar para existirem. Eu os deixaria sonhar. Bem, eu não sonho mais com nada disso. Mas veja, não tenho nada contra. Sou a favor de todas essas pessoas, não faço juízo de valor. Não sonho mais na idade que tenho e após tudo o que vivi. Eu não criticaria as pessoas por sonharem. Mas não lhes diria: “Atenção: são sonhos! Isso não se realizará jamais! Vocês estão nas nuvens!”. Não, bem: “Sonhem, vocês têm necessidade disso, é normal.” [Risos.] Mas eu pensaria que, entre os que precisam sonhar, deixemos que sonhem, porque, senão, não teriam força para aceitar as coisas como são. Eles ainda esperam. É assim que vejo as coisas. Eu digo as coisas e me leem como quiserem me ler. Não imponho nada, não sou um professor de sabedoria. Mas digo o que penso e observo o momento presente, e há apenas uma coisa em que acredito verdadeiramente, hoje em dia, é que, se você pode mudar um pouquinho o mundo, é a COP-21. Isto é, o gênero humano está se destruindo, e isso é resultado do capitalismo, bem entendido. Mas se deixarmos o capitalismo ir até o fim, morreremos todos. Acordem, portanto, senão vamos ser eliminados.


Asseguro a você: para mim, é precisamente o inimigo. Chegamos a um ponto em que o gênero humano se torna seu próprio inimigo e destrói tudo e destrói seu próprio planeta. Se ele destrói seu próprio planeta, então a loucura e a desmesura do capitalismo, bem, então o gênero humano logo se destrói. Mas se ele logo se destrói, então não há mais divisões e é necessário impedi-lo. Esse é o único combate verdadeiro. É assim como vejo as coisas. Chegou um momento em que o gênero humano é seu próprio inimigo. E nos damos conta de que o capitalismo não é a exploração da classe operária: é a exploração de tudo, de tudo o que existe, incluindo aí da própria Terra. Se o capitalismo for até o fim na sua loucura e na sua desmesura, ela será arrasada, ela não será mais habitável, e o capitalismo morrerá porque não terá mais nada para comer. É isso. Mas veja: é minha visão pessoal.


O professor Marcus Orione pondera que, no Brasil, foi justamente um trabalhador (Lula) quem mais habilmente usou o direito para quebrar a solidariedade do trabalhador. Como o senhor analisa essa situação?


Isso nos faz voltar ao mesmo ponto! Porque quebrar a solidariedade dos trabalhadores é quebrar um projeto político. É quebrar a ilusão de uma influência sobre o campo político. É assim que eu analiso essa afirmação.


O senhor hoje é advogado em Paris. O desencanto com o marxismo que menciona no prefácio à edição brasileira continua intacto?


[Muitos risos.] Não, com isso não estou de acordo! Veja, a especialidade como advogado… eu não sou um advogado de negócios, para começar! [Risos.] Posso dizer a você que nas matérias em que me especializei, isto é, fundamentalmente, em matéria, de um lado, de direito autoral e, de outro, de bioética, eu tenho o mesmo desencantamento. Por exemplo, em direito autoral estou completamente desencantado quando vejo que o direito autoral francês está morrendo, está sendo capturado pelo “copyright”, e isso pela direção ao mesmo tempo da jurisdição européia. Toda a Europa começa a ter uma identidade anglo-saxã, e raciocina à maneira anglo-saxã. E da mesma forma na bioética: sobre o corpo humano, os embriões, etc. etc. Portanto, esse desencantamento vai mais longe do que o desencantamento com a classe operária. Muito mais longe. Acho que o capitalismo contaminou tudo. Não é unicamente o Direito do Trabalho. Ele contaminou tudo. E essa contaminação é agora desastrosa. Eis o que eu penso, no fundo. Portanto, sou advogado, sim, e defendo como posso o que resta de defensável. E isso não serve para grande coisa. São causas desesperadas. Não tenho mais ilusões.


A única resistência, a única que me resta, é escrever o que penso. É isso. Mas as escrevo sem ilusões. Quer saber? O capitalismo ganhou e é assim. Se você quiser, curto e grosso, é assim. E se o capitalismo ganhou, é provavelmente porque o capitalismo exprime da melhor maneira possível a desmesura humana. Bem, é isso. O homem nasceu desmesurado, o homem nasceu desmesurado. Mais nada. Estamos prestes a nos destruir inteiramente, inventamos armas suficientes para nos matarmos. Sim, é terrível. É assim. Sabe, o capitalismo não é, para seus desafios, humano. Poderíamos exagerar [risos]. Como o capitalismo faz avançar a tecnologia, a ciência, etc., que dão à desmesura humana possibilidades cada vez mais gigantescas, o homem se torna cada vez mais desmesurado. Sua desmesura o faz avançar até sua autodestruição. Bem, a meus olhos, ser “anticapitalista” não quer dizer nada. O que é preciso observar é a relação entre o capitalismo e a desmesura humana. Veja, é meu ponto de vista. Você entende o que eu quero dizer?


[Sim, mas eu lembraria das posições de Marx, do marxismo clássico, que questionam a noção mesma de essência humana…]


Não, mas o que Marx diz… eu não critico o Marx político, o Marx filósofo, o Marx economista. Eu reconheço o valor de suas análises. Sabe, numa certa época se fazia a distinção entre “marxiano” e “marxista”. Você se lembra disso. Eu seria antes “marxiano”, isto é, reconheço o valor analítico etc. de Marx, obviamente. Mas o que em Marx não estava previsto, ele não teria como prever: eram os fornos dos campos de extermínio. Ele não podia prevê-los, evidentemente. No século XIX, ainda não se tinha chegado a isso, estava-se bem o começo. Ele não os previu. E é isso, de alguma forma, que destrói tudo. E que dá a medida da desmesura humana, e o capitalismo, neste momento, toma uma tal extensão que não é mais uma revolução proletária que pode combatê-lo, é a autodestruição. É assim. Estamos na fase final. Para mim, o século XXI é a fase final do capitalismo, porque ele está se autodestruindo, a si mesmo. É isso: é um processo que se tornou autodestruidor. Pois bem: Marx tinha previsto que a classe operária poderia destruí-lo. Ocorre que não é a classe operária que pode destruí-lo, é o próprio capital que se autodestrói.


[O senhor estaria de acordo, então, com a distinção que alguns ecomarxistas anglo-saxões sugerem entre condições de produção, relações de produção e forças produtivas? Que, então, a contradição mais importante seria entre condições de produção e forças produtivas?]


Com certeza! É o que eu quero dizer quando digo que o capitalismo é um processo autodestruidor. Porque, quando ele tiver explorado tudo, quando não tem mais nada para explorar, ele morre. É antes assim, é antes assim que eu vejo. Pois bem: se haverá uma revolta, veja, uma revolta mundial, perante uma tal destruição, porque o capitalismo não é mais sustentável, porque ele mata tudo e mata a si próprio, e se acontecerá talvez alguma coisa, eu já não sei dizer. Acho que não estarei aí para ver isso. Mas, em todo caso, já não posso dizer, mas, para mim é o único processo que pode fazer recuá-lo. Quando o capitalismo se destrói a si mesmo porque sua loucura de destruição faz com que tudo desapareça em torno dele, todas suas riquezas materiais, todas suas riquezas humanas, etc.


É assim que vejo as coisas agora. Portanto, luta de classes, tudo isso, está completamente ultrapassada. Não é mais luta de classes. É luta, como dizia Freud, entre eros e thanatos , a vida ou a morte, é isso. Bem, veja: tudo isso na minha modesta opinião, e não sei o que você pensa a respeito. É o meu ponto de vista. Se tentarmos ver o processo capitalista em nível mundial, é assim que ele aparece para mim. Mas do meu ponto de vista, mais uma vez. É o que eu quero dizer, não é complicado.


[Sem dúvida, mas o fato é que é preciso fazer algo para impedir esse cenário. Mas gostaria de colocar uma outra questão, minha: como o senhor vê essa leitura de Marx que termina de amplificar a noção de exploração, de sorte que a exploração não é apenas a exploração incidente sobre o homem, mas também sobre a natureza? Como o senhor entende, digamos, as leituras schellingianas de Marx?]


Veja, para mim Marx não tinha visto… como dizer… ele não conhecia o que Merleau-Ponty chamava de “a ditadura da ciência” (você não o conhece, claro…) [Conheço. Escrevi uma tese sobre ele…] É mesmo?! Bem, então você conhece Humanismo e Terror, etc., etc. Bem, Merleau-Ponty fala, num certo momento, da “ditadura da ciência” em O Olho e o Espírito , e é flagrante! E Merleau-Ponty toma consciência disso em 1960 apenas — em 1960! Bem, Marx não tem como conhecer isso. Marx não tem como conhecer essa “ditadura da ciência”, é impossível, ele não conhecia ainda sua ditadura. Marx põe a ciência em Darwin. Ele pensa que a ciência esclarece o homem, etc., e ele não pode compreender que a ciência é algo mais do que apenas “esclarecer o homem”, e que ela lhe dá a forma de ir até o fim de sua desmesura. Portanto, há algo que Marx não podia antecipar. Isso não se deve reprovar nele nada por não poder antecipar. Isso em primeiro lugar.


Em segundo lugar, Marx não mediu a desmesura humana [jogo de palavras: n’avait pas prit la mesure — literalmente, tomar a medida, medir — de la démésure humaine — da desmesura humana.] Ora, começa-se a tomar consciência da desmesura humana, não sei, após a Segunda Guerra Mundial. Quando da Primeira Guerra Mundial demo-nos que com as novas armas registramos muitos milhões e milhões de mortos, mas, a partir da Segunda Guerra Mundial, começamos a compreender a desmesura do homem. E nesse momento o marxismo inteiro deve ser relido desse ponto de vista. Pessoalmente é o que eu penso. Não digo que o que disse Marx está ultrapassado, não existe mais: de jeito nenhum. O que eu digo é que é preciso recolocar sua construção do capitalismo com o olhar que temos hoje em dia sobre a desmesura humana. E pensar o capitalismo como possibilidade de realizar a desmesura do homem. É assim que vejo as coisas.


[A última possibilidade da desmesura humana ou uma das possibilidades da desmesura do homem? Penso na escravidão, por exemplo.]


Mas, veja, não sei se você está a par da última utopia que temos hoje em dia, que é chamada de utopia do “pós-humano” ou “trans-humano”. Isto é — informe-se sobre isso! — bem, veja, as utopias nos dizem também alguma coisa de real, claro. Mas quando você lê a última utopia, que é a utopia do trans-humano, no fundo está sendo dito: o homem perdeu tudo, é preciso agora mudar a condição biológica do homem. É essa a utopia. Isso quer dizer alguma coisa. Não sei se ela será mudada. Mas ao mesmo tempo, ela nos diz: a condição do homem, tal como ela é, é “suicidária”. Portanto, é preciso mudar a condição humana — mas isso é outra história. Porém, a realidade para a qual ela aponta é a “dimensão suicidária” do homem. E aliás eu escrevi um livro sobre a utopia do pós-humano que deve aparecer em setembro, que se chama La vie assassinée [A vida assassinada]. Eis o ponto onde estamos. [Risos.]


[É curioso, porque, quando se vive num país pobre como o nosso, e ouço um europeu como o senhor falar do “trans-humano”, isso nos parece um filme de ficção científica, mas é real, enfim. Em nosso horizonte de alguns anos. É o genoma, etc. É uma pena que não possamos falar mais sobre isso, mas, num país como o Brasil, em que as desigualdades são vergonhosas e temos os que têm acesso aos tratamentos mais avançados dos EUA ou da Europa para o genoma e tudo isso. Mas na base da pirâmide temos aqueles que não têm sequer os medicamentos mínimos…]


Você está me dizendo que no Brasil já há algo assim como duas raças de homens? É isso? Entendi, entendi. Não está errado. Entendo bem.


[Talvez o senhor possa imaginar o Brasil, mas é uma simplificação empobrecida, como uma mistura de um país extremamente pobre da África com um país extremamente rico da Europa no mesmo espaço territorial.]


Compreendo. Compreendo.


[Senhor Edelman, lhe agradeço enormemente a entrevista (...)]



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