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2024.1 | RELATÓRIO - Reunião 07/03/2024 - "Corrente e contrato: a escravidão colonial segundo a crítica da forma jurídica", Pedro Luiz de Oliveira Pinto

Relatório – Reunião 07/03/2024



TEXTO: PINTO, Pedro Luiz de Oliveira. Corrente e contrato: a escravidão colonial segundo a crítica da forma jurídica. 2022. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. (P. 10 a 45).



INTRODUÇÃO

  • Problematização: eternização ideológica do capitalismo, de modo que a história da sociedade humana é projetada como uma evolução teleologicamente capitalista, e desde as suas origens

  • A abordagem histórica sobre as colônias americanas, mesmo quando associadas à tradição marxista, acaba projetando, na maioria dos casos, certas características capitalistas no mundo colonial

  • A correta compreensão da escravidão colonial é um ponto nevrálgico para o estudo da formação dos países latino-americanos, do império no Brasil, da guerra civil nos EUA, da constituição da classe trabalhadora nas Américas, do processo de acumulação primitiva de capital na região, do debate racial moderno etc.

  • Percurso da investigação: levantamento das elaborações de Marx e Engels acerca da escravidão, especialmente em O capital (capítulo 1); panorama das escolas de pensamento que se debruçaram sobre o fenômeno da escravidão nas colônias, e sob uma perspectiva de contraste entre a tese do escravismo colonial e a tese de um capitalismo com escravidão (capítulo 2); crítica da ideia de uma escravidão capitalista a partir do contraste entre as formas sociais peculiares ao escravismo colonial e as formas sociais que são próprias do modo de produção capitalista (com destaque para a forma jurídica, cuja categoria do sujeito de direito se mostra incompatível com a situação do indivíduo escravizado)

  • Questões de método: aproximação entre autores aparentemente distantes (Pachukanis, Althusser e Gorender); captura da especificidade das formas sociais e do papel da luta de classes, em oposição aos paradigmas da total coisificação do escravo ou da exacerbação da sua agência (como se a escravidão pudesse apresentar elementos de contratualidade)


CAPÍTULO 1: ESCRAVIDÃO E MARXISMO

Marx, Engels e a Guerra de Secessão

  • Marx criticou a visão da imprensa inglesa sobre a guerra civil nos EUA, tratada como mero conflito entre um projeto protecionista e um projeto de livre mercado. Também condenou o seu partidarismo em favor dos estados sulistas, bem como a manipulação das informações

  • Caracterização da guerra como um embate entre a ofensiva do Sul, movido pela necessidade de ampliar o sistema de plantation, e o Norte, movido pelo objetivo de preservar a União. Em adendo, a escravidão no Sul era um entrave para a consolidação do trabalho assalariado no Norte (impossibilidade de coexistência entre os dois modelos)

  • Crítica às tendências conciliadoras da União (Lincoln e o Partido Republicano) em face da oligarquia sulista e do Partido Democrata. Tais tendências se manifestavam na contraposição do governo às medidas mais contundentes contra os escravistas, algo que minaria a ação resoluta dos abolicionistas

  • Defesa dos setores radicalizados do Norte, que tinham em seu horizonte a perspectiva de uma guerra revolucionária e abolicionista (em contraste com a política de Lincoln, baseada no apelo à renúncia negociada)

  • Compreensão de que a política conciliadora de abolição paulatina e pactuada da escravidão foi superada pela luta de classes, já que a fuga dos escravos e o seu alistamento no exército da União favoreceram um desfecho baseado no enfrentamento

  • Expectativa de que a guerra poderia ter desdobramentos revolucionários nos EUA e também na Europa. A luta pela abolição do escravismo era vista como um fator amplamente favorável à luta da classe operária contra o capital (sobretudo no que diz respeito à demanda de redução da jornada de trabalho)

A escravidão em O capital

  • Teorização sobre o uso do termo “escravidão” em O capital e também nos Grundrisse (não se trata de levantamento estatístico); percepção de que a escravidão não é um tema central naquelas obras, mas antes uma categoria que foi usada comparativamente em relação às formas sociais capitalistas. Não há em Marx uma história econômica da escravidão

  • Quatro usos fundamentais do termo escravidão: 1) escravidão do mundo antigo; 2) escravidão colonial nos EUA; 3) escravidão como recurso linguístico; 4) escravidão como categoria incompatível com a lei do valor

  • 1) Escravidão do mundo antigo: prática presente nos povos nômades, mais propensos à troca de produtos (e pessoas), e nas civilizações mediterrâneas (no caso de Roma, em particular, a escravidão se impõe sobre o devedor plebeu arruinado)

  • 2) Escravidão colonial nos EUA: o escravocrata americano, enquanto proprietário dos meios de produção, absorve trabalho excedente tanto quanto o barão normando, o boiardo valáquio, o latifundiário moderno e o capitalista. No entanto, é somente sob o capitalismo que esse trabalho excedente ultrapassa o domínio do valor de uso. No caso da escravidão colonial, verifica-se uma distinção de períodos – uma primeira fase, ainda patriarcal (voltada para o consumo local), e uma segunda fase, na qual a produção escravista se volta para o mercado mundial, mostrando-se suscetível à influência capitalista

  • Distinção entre uma “primeira escravidão” (séculos XVI a XVIII) e uma “segunda escravidão” (século XIX) em Dale Tomich; distinção entre o escravismo pleno e o escravismo tardio em Clóvis Moura

  • A expansão do sistema fabril no século XIX aumentou a produção na indústria têxtil inglesa e nas plantações de algodão nos EUA. Por um breve período, a indústria moderna impulsionou as fazendas escravistas (contradição real)

  • 3) Escravidão como recurso linguístico: comparação entre a carga de sobretrabalho que é inerente à escravidão com as jornadas de trabalho extenuantes que eram enfrentadas pelo proletariado branco

  • 4) Escravidão como categoria incompatível com a lei do valor: enquanto parte de um processo de acumulação primitiva de capital, a escravidão é um expediente pré-capitalista que condiciona a separação entre proprietários de meios de produção e produtores despossuídos, possuidores da capacidade de trabalho viva. Tal separação é inverificável no escravismo (em que o produtor pertence a outrem), ela só existe sob o modo capitalista de produção. Daí falar-se na escravidão moderna como uma anomalia presente apenas em pontos isolados do sistema burguês de produção (Grundrisse)

  • A relação entre senhor e escravo é transparente. Os grilhões são visíveis e a desigualdade entre os indivíduos humanos é tomada como regra (daí a impossibilidade de uma teoria do valor no pensamento de Aristóteles). Já na relação entre capitalista e trabalho assalariado, a exploração e a dominação ocorrem de maneira dissimulada. A operação mercantil de troca de dinheiro por força de trabalho faz com que o trabalhador se veja vinculado ao capital por fios invisíveis, representados pela fictio juris do contrato

Método e forma jurídica

  • Premissa extraída da seção anterior: o escravo não pode ser contratante, e por isso não pode ser considerado como um sujeito de direito. Da mesma forma, não se pode falar em capitalismo num contexto em que a reprodução da força de trabalho não passa por expedientes jurídico-contratuais

  • Sentido do raciocínio: parte-se das formas mais desenvolvidas e diversificadas como padrão de comparação categorial com as formas menos desenvolvidas e diversificadas (a complexidade atual lança luz sobre as estruturas mais simples do passado)

  • Oposição a uma lógica de progressão linear na história, já que a realização dos indícios do passado em significações plenas no presente depende das contingências do processo histórico (uma possibilidade categorial não garante nenhum rumo para a história)

  • A comparação feita por Marx entre a escravidão e o capitalismo é sempre no sentido de reforçar as diferenças fundamentais entre ambos, e não de supor uma relação de continuidade. Nessa diferenciação, o direito assume um lugar de destaque enquanto elemento especificador do assalariamento, enquanto uma relação capitalista de produção

  • Pachukanis: a transformação geral do produto do trabalho em mercadoria tem por contrapartida necessária a conversão do indivíduo em sujeito jurídico. Direito e capitalismo são inseparáveis em sua historicidade

  • Naves: impossibilidade de um “direito romano” diante da inexistência do capital e da equivalência subjetiva real na Antiguidade romana. Os atos de troca em Roma, além de serem marginais, seriam determinados pela religião e pela política, e não pela abstração da capacidade volitiva dos sujeitos. Não poderia haver tal abstração numa sociedade marcada pela desigualdade profunda entre os seus membros

  • Desafio teórico: entender que a escravidão colonial, mesmo se submetendo a expedientes de comercialização muito superiores aos que eram praticados na escravidão antiga, ainda assim se mostra incompatível com a forma jurídica. A mercantilização da força de trabalho escravo não se dá em termos capitalistas e, portanto, não dá ensejo à forma jurídica


DEBATE

  • A escravidão colonial guarda diferenças não apenas com o capitalismo, mas também com outras formas de escravidão, como a antiga

  • Eternização da ideologia, só há o presente contínuo na perspectiva, não há um passado ou futuro (Althusser a partir de Freud: a ideologia é “eterna”, assim como o inconsciente). Há um efeito de atemporalidade, como no caso do sujeito, que é “sempre-já” sujeito

  • A naturalização ideológica do sujeito faz da escravidão uma anomalia e uma etapa a ser superada num processo histórico que seria, necessariamente, um processo de realização do sujeito original (projeção da perspectiva atual sobre o passado)

  • Embora Althusser use o termo “eternidade”, convém usar a noção de transhistoricidade. A ideologia há de ser entendida como um “sempre já dado enquanto”, como uma eternidade condicionada a uma forma de sociedade

  • Althusser afirma que a ideologia só existe para o sujeito e pelo sujeito, mas não se trata do sujeito de direito. O sujeito é uma estrutura, uma função de assujeitamento que pode existir em diversos modos de produção (elemento transhistórico)

  • A interpelação dos indivíduos como sujeitos não necessariamente se realiza a partir da categoria do indivíduo moderno

  • Althusser propõe uma teoria geral da ideologia, mas o assujeitamento ocorre de formas diferentes nos distintos modos de produção

  • O capitalismo instaura uma relação entre ideologia em violência, em contraste com as sociedades pré-capitalistas, unilateralmente organizadas em torno da violência

  • A questão da ideologia passa pela opacidade ou pela transparência de uma sociedade (ex.: capitalismo vs. feudalismo)

  • A ideologia organiza e esconde a violência no capitalismo, algo que não é captado pelo discurso progressista (que opõe violência e direito)

  • A ideologia escravista é uma ideologia da desigualdade

  • O capitalismo permite uma negociação de classes, algo que não se coloca efetivamente no ambiente escravista

  • A apropriação do excedente em sociedades pré-capitalistas é extraeconômica, mas cada forma de sociedade lida de modo diferente com a violência

  • A apropriação extraeconômica não exclui a existência de uma ideologia (seria melhor falar em apropriação extracontratual)

  • Althusser tentou enfrentar o problema da estrutura imaginária que transpõe as condições de existência, uma questão colocada já em Marx e inicialmente respondida com a figura da alienação

  • A representação não é um fator determinante da ideologia, mas sim um produto dos processos ideológicos. Considerar a representação em si mesma, como se ela governasse as práticas sociais, conduz a uma percepção distorcida

  • A noção de agência do escravo é uma forma disfarçada de eternizá-lo como sujeito, em contraposição à imagem da coisa. Nessa leitura, a rebeldia escrava é condicionada à forma sujeito, o que é incompatível com a natureza pré-capitalista do escravismo (além de sugerir uma indevida contratualização da violência, uma pasteurização da crueldade do escravismo)

  • O discurso neoliberal opera retroativamente sobre a escravidão, infundindo noções de empreendedorismo e consagrando o horizonte absoluto da liberdade mercantil

  • Genovese percebeu uma distinção entre os modelos do Norte e do Sul, mas não há propriamente a percepção de modos de produção opostos (isso só se dá em Gorender)

  • O expansionismo inerente ao modo de produção capitalista exige a extinção de quaisquer outros modos de produção (e exemplo do escravismo colonial)

  • A referência na forma mais “desenvolvida” como chave para a explicação das formas menos “desenvolvidas” não deve conduzir ao desenvolvimentismo e ao etapismo

  • Ao se dizer que o escravo não é sujeito pelo fato de que não realiza contrato, afasta-se a subjetividade jurídica sem se incorrer na naturalização do escravo como coisa


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