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GESEMA | RELATÓRIO - Reunião 20/05/2021

GESEMA 1/2021

RELATÓRIO – 6ª REUNIÃO 20/05/2021



Texto: SILVA, Júlia Lenzi. Para uma crítica além da universalidade: forma jurídica e previdência social no Brasil. Tese (Doutorado). São Paulo: USP, 2019 (p. 110-134).



Presentes: Adriana da Conceição, Andressa Ruiz, Bruno Correa Batista, Cleison Castro, Deise Lilian, Francine Oliveira, Gabriela Rocha, Graciele Targino, Hendriky Lima, Isabella Tie Hirano, José Ricardo, Júlia Lenzi, Marcus Orione, Maria Luiza Bastos, Monalisa Campelo, Nayara Bueno, Pablo Angelim Hall, Renan Pugliesi, Saula Rebeca, Silas Ramos.



Pontos do texto: O texto da semana se debruça sobre o período de transição do capitalismo concomitante à criação do Regime Geral de Previdência Social. A partir da separação das esferas pública e privada, a forma jurídica previdenciária fora instituída como uma questão de direito social privado, visto que estava restrita aos trabalhadores da esfera privada. A vinculação da forma jurídica previdenciária à esfera privada possibilitou que o domínio estatal se realizasse no âmbito público. Desse modo, o Estado poderia agir com vistas à preservação das condições necessárias à continuidade do processo de acumulação, conformando-se, contudo, como ente neutro. No início da reprodução do modo de produção capitalista no Brasil, o salário dos trabalhadores era baixíssimo, sendo possível somente a garantia da mera reprodução biológica destes. A fim de estabelecer a relação de equivalência, a proteção previdenciária – a qual incluía concessão de benefícios e serviços de saúde – surge. Uma vez que o salário se limitava à mera reprodução biológica, a proteção previdenciária é instituída com o condão de estabelecer a relação de equivalência e, consequentemente, suscitar a produção do valor de troca.

No que concerne ao desenvolvimento da indústria do transporte, importa mencionar o porquê de as CAPs terem sido instituídas primeiro em face dos ferroviários. Tais trabalhadores eram responsáveis pelo deslocamento das mercadorias e, inclusive, da mercadoria força de trabalho. Demais disso, a intervenção do Estado na inatividade do trabalhador culminou no estabelecimento da ideologia jurídica, porquanto os trabalhadores passaram a agir de modo subserviente à relação entre capital e trabalho com vistas ao recebimento dos benefícios previdenciários. Em relação à segunda fase de desenvolvimento da forma jurídica previdenciária, a criação dos IAPs fora acompanhada pelo desenvolvimento das forças produtivas tipicamente capitalistas. O desenvolvimento destas forças produtivas, além de ter direcionado o processo manufatureiro à grande indústria, promoveu transformações na base técnica de produção. Tal transformação se correlaciona ao desejo de consolidar o trabalho abstrato mediante incrementos industriais e tecnológicos, posto que o processo produtivo não mais dependeria da destreza e sabedoria pessoal do trabalhador para se realizar. Contudo, o período de conformação da abstração foi significativamente lento em razão de dois fatores: o valor do maquinário era muito superior ao salário dos trabalhadores sujeitos à substituição; além disso, era necessário um acúmulo prévio de capital para conferir maior celeridade ao processo de industrialização. Para concretizar o modo de produção tipicamente capitalista no Brasil, o Estado interveio no sistema de custeio da administração da Previdência Social, surgindo, assim, a tríplice contribuição: empregado, empregador e Estado. A mudança no Regime Geral de Previdência Social caminhou ao lado da transformação do Regime Próprio de Previdência Social com o intento de suscitar, também, o avanço da industrialização. Esses fatos foram cruciais para a consolidação do Estado como instância neutra, sendo o Direito Previdenciário conduzido à esfera pública. Todavia, a incompletude da abstração permanecia, tendo em vista que as características subjetivas dos trabalhadores ainda permeavam a produção e a base técnico-científica das forças produtivas não se desenvolvera de modo satisfatório. Sendo assim, criaram-se institutos direcionados às demais classes profissionais substanciais à produção do valor (trabalhadores marítimos, comerciários, etc.) à luz da mesma lógica da proteção previdenciária dada aos ferroviários. Tal situação desembocou no estreitamento do vínculo entre contribuição prévia e recebimento do benefício, tendo ocorrido a diminuição da oferta de serviços de saúde pelo Regime de Previdência Social. O estreitamento deste vínculo criou um superávit – gerado, portanto, pelas contribuições prévias – que fora utilizado como investimento nas forças produtivas. O cenário em comento desaguou na unificação do sistema burocrático, legislativo e administrativo da Previdência Social, criando-se, para tanto, o Instituto Nacional de Previdência Social. Tal unificação, somada à expansão do sujeito de direito previdenciário, foram determinantes ao estágio de uniformização da forma jurídica previdenciária, sendo este um processo fundamental à relação de equivalência.


Comentários: Em relação à indústria de transportes, como se dá a transferência do valor dos meios de transporte às mercadorias inseridas no circuito generalizado de trocas? Isso se dá por intermédio do desgaste dos meios de transporte no processo de produção?


Comentários: É importante compreender que, para Marx, transporte não é parte da circulação, não sendo parte, portanto, do comércio. No Livro II d’O Capital, Marx é categórico ao afirmar que o transporte é uma forma de indústria. Qual seria o processo produtivo da indústria de transporte? O deslocamento entre o centro produtor e o centro consumidor. Desse modo, como se agrega valor às mercadorias por meio do transporte? O desgaste do processo dos meios de produção da indústria do transporte incorpora valor à mercadoria. A indústria de transportes é importantíssima, posto que organiza o circuito de trocas dentro do espaço-tempo; esta não só diminui a necessidade de estoques produtivos, mas a quantidade de capital inicial para dar início a um empreendimento. Se um empreendimento se utiliza de uma indústria de transportes já estabelecida, isto já facilita o seu ingresso no processo produtivo. Além disso, urge relembrar que o Brasil é um país de dimensões continentais, fato que assegura à indústria de transportes um papel crucial no que se refere à ligação dos mercados produtores aos consumidores.


Comentários: O maior conglomerado industrial hoje é a Amazon, sendo esta uma indústria necessariamente de transporte. A Amazon apresenta uma planta e forma de execução muito similar às indústrias do auge do fordismo. Existe um documentário sobre a Amazon que está disponível no YouTube, no qual se pode se constatar o imenso controle que há sobre a força de trabalho. Ali não há produção somente de mais-valia relativa, mas sobretudo de mais-valia absoluta, uma vez que o documentário retrata a implementação de um chip nos cartões de ponto dos empregados que contabilizava quanto tempo aquele trabalhador estava efetivando trabalhando na esteira de rolagem e quanto tempo este gastava almoçando e indo ao banheiro. Tais intervalos poderiam ser descontados caso se ultrapassasse o tempo fixado em contrato. Esse cenário nos faz questionar os argumentos que defendem a não existência de capital produtivo atualmente.


Comentários: Em relação ao que Júlia expôs, basta verificar que, em todas as políticas keynesianas, há a realização de grandes obras voltadas à circulação. Estas políticas trabalham a estruturação da circulação da mercadoria força de trabalho, por isso o empenho em fazer grandes obras rodoviárias e ferroviárias. A questão do transporte é tão importante que, para além da superação da questão estrutural inicial no Brasil, tal centralidade ainda ecoa nos dias de hoje; é só notar que a greve em que há mais disputa no Brasil é a greve de metroviários, tendo tais conflitos desaguado comumente em questões não só jurídicas, mas que tocam, até mesmo, execução de falcatruas processuais (exemplo de uma juíza na cidade de São Paulo que paralisou uma greve de metroviários, ainda que incompetente para esta decisão). A deslealdade processual passa a fazer parte deste processo para que a circulação da mercadoria força de trabalho não deixe de se realizar. É interessante observar que a paralisação da greve é colocada como uma ponderação favorável à classe trabalhadora (“se o metrô parar, o trabalhador não poderá ir e vir”), contudo esta não deseja ir e vir para ser explorada como, de fato, é. Ademais, pode-se mencionar os caminhoneiros, visto que, ainda que sejam uma das forças reacionárias do país, a greve deste grupo culmina em uma significativa interrupção do processo produtivo, porquanto descontinuam a compra e venda da força de trabalho.


Comentários: Gostaria de pontuar o quanto a transformação do estágio do modo de produção capitalista no Brasil faz com que os conceitos a respeito de eficiência estatal sejam absolutamente contraditórios. No momento de criação do IPASE, constituiu-se o Estado de Direito por meio da criação de um corpo burocrático bem remunerado, o qual gozava de estabilidade. Desse modo, os princípios da impessoalidade, legalidade e moralidade administrativas seriam personificados, constituindo, assim, o Estado como terceiro neutro, desinteressado, mediador do conflito entre capital e trabalho e, portanto, realizador do bem comum. Se neste momento histórico citado a conformação das forças produtivas tipicamente capitalistas demandava, além de um Estado neutro e desinteressado, a constituição da esfera da cidadania, no momento atual de subsunção hiper-real do trabalho ao capital (conceito cunhado pelo Prof. Marcus Orione), em que se está extrapolando tudo que já se conheceu no tocante às formas de subsunção do trabalho ao capital, tem-se, na verdade, a desconstituição da esfera pública por meio da ideia de que o Estado não é mais o terceiro neutro e desinteressado. À vista disso, o recorte de classe do Estado está cada vez mais claro. A ideia de eficiência estatal não passa mais pela constituição do princípio da cidadania; de modo contrário, tal ideia perpassa a destruição do aparato burocrático e a sua posterior privatização, bem como a transformação dos direitos sociais em mercadorias e o seu retorno à esfera privada. A partir das CAPs, tivemos uma passagem do âmbito privado ao público, tendo possibilitado a sedimentação da ideologia jurídica (Estado como primeira derivação da forma jurídica). No momento atual, o que se tem é o retorno à esfera privada, uma vez que a ideologia jurídica está tão fortalecida, o triunfo do capital é tão acachapante e vivemos um momento tão profundo de declínio da luta de classes que o capital se sente confortável para retornar à esfera privada e mercantilizar todos os direitos que, até então, estavam adstritos à seara pública, devolvendo-os ao âmbito do contrato entre iguais proprietários de mercadorias. O Estado não intervém mais na relação entre trabalhadores e empregadores, porquanto o que existe hoje não são trabalhadores, mas colaboradores, empreendedores de si mesmo. Os termos entre si não são só vazios de conteúdo; estes revelam a nossa vivência ideológica. A ideologia não serve para mistificar, tendo em vista que está sendo vivenciada na prática. O retorno da forma jurídica previdenciária à esfera privada nos mostra que ser colaborador não é algo ideológico do mundo mistificado, mas algo factual que o próprio Direito está realizando.


Comentários: No começo da Previdência Social, havia a necessidade de profissionalização, impessoalidade e construção de um aparato específico de Estado que fosse, ao mesmo tempo, repressivo e ideológico. A construção deste aparato é algo procedimental, sendo o Estado constituído ao longo do tempo. A área do Direito mais importante para tal processo é o Direito do Trabalho, porque, para conformar todo esse aparato, houve a necessidade de construção da Justiça do Trabalho e difusão de direitos trabalhistas que fomentassem acesso à circulação. O Direito do Trabalho fora fundamental para o início disso tudo. Em relação à subsunção hiper-real do trabalho ao capital, é possível notar que, neste novo modelo de Estado, o debate previdenciário está muito atrelado ao debate técnico relativo ao déficit. Se, no início, a Justiça do Trabalho possuía uma ligação profunda com os seus postulados de proteção do trabalhador, posto que estava arquitetada também nessas circunstâncias de conciliação, é crucial notar que a Justiça do Trabalho também se transformara em face das dinâmicas do modo de produção capitalista. O Judiciário, em tese, é o mais neutro dos poderes, porém se o Judiciário o fosse realmente, já se resolveria o problema do debate técnico, uma vez que os juízes assim o são. Contudo, os juízes são técnicos que não têm legitimidade, porquanto não são escolhidos pela população, como ocorre nos demais poderes. À vista disso, os juízes estão sendo colocados neste mecanismo de legitimidade mediante índices de boa gestão e eficiência. Há uma mudança de gestão interna do Judiciário, o qual vem sendo bastante vigiado. Tal mudança remete a um tipo de especialização interna que faz com que o Judiciário se torne uma grande empresa nacional. O Judiciário passou a ser profissionalizado dentro desta perspectiva. Tem-se uma técnica de gerenciamento que modifica essencialmente o Judiciário como ente neutro, inclusive no que concerne à uniformização da jurisprudência. O juiz técnico, além de ser um grande gestor que aprende a dar continuidade à compra e venda da força de trabalho como gestor da sua própria força de trabalho e com a invasão da técnica no seu dia a dia, é, também, um gestor que precisa mostrar que preserva a autonomia privada, sendo isto fundamental no Direito do Trabalho, tendo em vista que se exige que o juiz não tome partido, fato que faz o Direito do Trabalho perder o seu elemento específico de proteção do trabalhador. O Direito do Trabalho se assemelhará às demais áreas do Judiciário. Dentro desse sistema, não há sentido na especialização, a não ser das demandas privadas, as quais tenderão a ser resolvidas por conciliação. O próprio Judiciário sofreu com o processo de privatização, seja por conta do discurso conciliatório, seja por conta de sua estruturação. O que nós tínhamos no início não se tem mais. As formas de Estado serão moldadas ao longo do tempo histórico. Os juízes são convidados a não conceder mais direitos sociais, visto que as varas são analisadas em face da taxa de congestionamento. A improcedência das ações importa em uma taxa de congestionamento menor.


Comentários: Ocorre da mesma forma na seara administrativa. No tocante ao INSS, é bastante comum se ouvir sobre a “cultura do indeferimento”. Esta também é uma sistemática interna de fiscalização do próprio servidor em relação aos benefícios que são concedidos. Além da burocracia, há um congestionamento das hipóteses em que se concede o benefício, suscitando, portanto, a prática do indeferimento. O próprio servidor público fica sob todos os holofotes em caso de concessão, não estando a improcedência subsumida à estratificação, burocratização e fiscalização.


Comentários: A partir das ideias do texto, depreende-se que as reformas e criações de leis com o intuito de proteger os trabalhadores no âmbito previdenciário se concretizaram a fim de perpetuar a manutenção do capitalismo. No que se refere à Reforma da Previdência, esta cerceou direitos de todos os lados. Os benefícios previdenciários diminuíram de tal forma que a concessão destes não mantém o trabalhador alheio ao mercado de trabalho. Essa seria uma forma de fazer com o que o beneficiário permaneça trabalhando? É possível que se chegue a um momento de colapso em que o trabalhador não poderá se ausentar do ambiente laboral, visto que a Previdência Social não os amparará de modo satisfatório, mas também não conseguirá exercer a atividade em face da deterioração da saúde? Ademais, qual foi exatamente a transformação histórica sob o modo de produção capitalista que possibilitou a Reforma da Previdência?


Comentários: A perspectiva de que existe um sistema de proteção social e de que os direitos sociais tem por finalidade assegurar uma vida minimamente digna ao final do período produtivo é inteiramente nossa. O capitalismo nunca teve como função garantir bem estar, saúde e vida digna. As diversas formas de Previdência Social que existiram atenderam fundamentalmente à necessidade do capitalismo em determinado estágio de desenvolvimento ou transformação. Com relação às CAPs, a sua principal função foi de dar vida ao princípio da equivalência. Como nosso mercado de compra e venda da força de trabalho está marcado pelo anterior modo de produção escravagista, isso faz com que os salários pagos sejam muito baixos. Desse modo, o primeiro elemento da Previdência foi tentar constituir uma maior equivalência entre o trabalho realizado e o valor pago por ele. Se isso não vinha na forma de trabalho direto, vinha na forma de salário indireto. Benefícios previdenciários são salário indireto, seja porque não existe outra fonte de riqueza a não ser o próprio trabalho, seja porque nossa previdência tem como marca o critério de contribuição. As CAPs tinham o objetivo de assegurar a equivalência entre trabalho e capital na forma de salário indireto. No âmbito dos IAPs, a partir da passagem da forma jurídica previdenciária do âmbito privado ao público e a constituição destes montantes de recursos, obteve-se um valor que propiciou e alavancou o processo de industrialização. Os IAPs tiveram a importante função de traduzir o Estado como terceiro neutro e desinteressado, o qual passa a ser responsável por conceder benefícios previdenciários e reforçar a lógica dos direitos sociais como direitos de cidadania, mas também a função material de propiciar o alavancamento do modo de produção capitalista por meio dos fundos públicos. Nós estamos vivendo uma época de baixa taxa de juros; entre 2011-2012, a taxa SELIC passa a cair. Se se tem o mundo inteiro com taxas de juros baixas, para onde o capital passa a voltar seus olhos? Para os fundos públicos. A Reforma da Previdência não é só uma maneira de constituir um novo mercado por meio dos planos privados de aposentadoria, mas uma nova forma de apropriação de fundo público. Novamente, a Previdência alavanca novos processos de rotação do capital.


Comentários: Achei muito interessante o trecho da tese em que se comenta sobre a intervenção do Estado na inatividade do trabalhador como meio de garantir a preservação da mão de obra, sendo esta um elemento a mais no processo de controle e disciplinamento do trabalhador.


Comentários: Há uma tese sobre a natureza da contribuição ser de salário social diferido. A contribuição é um salário social que será gozado mais à frente. Trocando em miúdos, o próprio trabalhador paga o salário do qual irá dispor com o passar do tempo. Gostaria de ressaltar outro ponto: há uma diferença entre sistema e modo de produção. A teoria dos sistemas é muito funcionalista, posto que deriva de uma dinâmica próxima à biologia. No que se refere ao capitalismo, não podemos ser funcionalistas, caso contrário não perceberemos a produção da vida material. Deve-se tomar cuidado para não equiparar sistema e modo de produção.


Comentários: Em relação aos sistemas, um livro importante para se dissecar a diferença entre sistema e modo de produção é o de Pedrinho Guareschi.


Comentários: Para Niklas Luhmann, o sistema do Direito não se comunica com o da economia, tendo cada um o seu código binário. Tais códigos não funcionam juntos. Contudo, urge sopesar que, no que concerne ao modo de produção capitalista, há uma aproximação entre sistemas e, por isso, a economia interferirá neste processo, embora comumente esteja disfarçada de direitos fundamentais. Não é possível resguardar as funções como se elas se tocassem somente ocasionalmente. A maior parte da interpretação atual do Supremo Tribunal Federal leva em consideração a eficiência econômica. A tese dos sistemas auxilia na manutenção da aparência relativa à separação entre Direito e modo de produção. Se a supradita tese fosse aplicada, teríamos um positivismo que, se bem manejado, não ensejaria a Reforma da Previdência, uma vez que esta reforma simplesmente acaba com a Previdência Social. Os novos requisitos da aposentadoria por tempo de contribuição impõem obstáculos no que se refere ao acesso ao benefício. Essas condições desconsideram o princípio da igualdade, sendo, para mim, inconstitucional a Reforma da Previdência. As transformações ocorridas no Direito e no Estado devem ser analisadas à luz das próprias mudanças do modo de produção capitalista. Quando as questões previdenciárias estavam adstritas à esfera privada, se se recuperar o Direito do Trabalho da mesma época, se observará que a negociação coletiva era privada. Os sindicatos eram pessoas jurídicas de direito privado.


Comentários: Todo o debate que se tem visto acerca de saúde mental e autocuidado traduz um novo processo de individualização que relega ao próprio sujeito de direito a responsabilidade sobre o seu bem-estar. As lógicas de individualização que perpassam a esfera da saúde e da Previdência Social são extremamente necessárias para a conformação da força de trabalho e a continuidade da compra e da venda. Tal discurso é muito importante para o capital de hoje, posto que direciona ao sujeito a responsabilidade de continuar comprando e vendendo força de trabalho, independente de sua saúde física e mental. Ademais, vejam que o deslocamento da forma jurídica previdenciária do privado ao público traz uma possibilidade para a dinâmica do capitalismo. O fato de estar na esfera pública faz com que a forma jurídica sempre esteja referendando a liberdade e a igualdade entre os sujeitos de direito previdenciário, independente do conteúdo. Ter mais ou menos aposentadoria dependerá do estágio de desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes, contudo não é isso que afirmará a liberdade e a igualdade, mas o fato de a forma jurídica estar inserida na dinâmica da cidadania. A liberdade e igualdade dos sujeitos de direito passam a ser atestadas não pela concessão ou negativa do benefício (conteúdo da forma), mas pela forma jurídica estar dentro do Estado. Se a forma sair da esfera pública e regressar à esfera privada, ficará clara a força do capitalismo, visto que ele pode abrir mão da esfera da cidadania em razão de esta possibilidade estar sendo reforçada pela força da ideologia jurídica.


Comentários: Em São Bernardo, alguns servidores do INSS, em virtude de uma semana do período de transição, terão que trabalhar mais sete anos. A Reforma da Previdência é tão nefasta que faz com que os agentes do Estado compartilhem do mesmo sofrimento vivenciado pelos segurados do Regime Geral. Um servidor tentou suicídio por causa deste fato.


Comentários: Gostaria de tecer uma consideração sobre o papel da forma jurídica e do Estado na garantia da igualdade. Na página 120, pude notar como o capitalismo é contraditório e como a igualdade assegurada pela forma dá funcionamento às relações jurídicas. Contudo, Júlia destaca (na página supracitada) que “no mesmo sentido, também estamos de acordo com a interpretação de que a expansão da proteção previdenciária para outras categorias, bem como a estruturação na forma de diversos institutos públicos, teve o condão de instalar a competição entre categorias profissionais com vistas à conquista de privilégios, competição esta estimulada pelo Estado que comumente distribuía benefícios diferenciados”. Pode-se depreender que, ao mesmo tempo em que se necessita de igualdade para o funcionamento das relações jurídicas, cria-se competição e divisão da classe trabalhadora, algo que dificulta a organização das lutas de classe.


Comentários: A perspectiva de individualização e responsabilização é um elemento típico do processo de universalização do sujeito de direito. Quanto mais se aumenta o nível de individualidade, mais as responsabilidades e conquistas são postas no plano individual. Demais disso, a observação feita por Francine é fundamental para se compreender a luta contra a classe trabalhadora, uma vez que, ao longo do processo histórico como um todo, tem-se um constante objetivo de fragmentação da classe trabalhadora. É possível encontrar isto em sistemas de proteção social, uma vez que, ao se proteger um grupo em detrimento de outro, há a criação de uma competição intensa entre os grupos relativa à conquista de direitos específicos do seu nicho. Tal competição se dá sempre sob o discurso de escassez econômica. Sendo assim, a luta de classes fica fragmentada, restando a obtenção de elementos específicos à continuidade da vida material por cada grupo. O próprio conceito de categoria profissional é ruim, porquanto indica que a classe trabalhadora se organiza com base no modelo de produção ofertado pelo capitalismo. O capitalismo dá a forma de organização da classe trabalhadora; isto já rompe a possibilidade de a totalidade da classe trabalhadora se manifestar. Soma-se a isto o fato de que é muito difícil saber o que é uma identidade da classe trabalhadora. O conceito identitário se vincula mais às questões de raça e gênero, entretanto, em relação à questão do trabalhador, o que seria se identificar como tal? A única coisa que nos liga é o fato de vendermos a nossa força de trabalho. No caso do pequeno empreendedor, cria-se uma confusão, visto que este não se entende como trabalhador pelo fato de comprar episodicamente força de trabalho, ainda que em uma escala pequena. Tornamo-nos, no processo fragmentado da estrutura do capital, pequenos compradores de força de trabalho; tal aparência desmembra ainda mais a classe trabalhadora. Embora tenhamos identidade, este não pode ser o elemento que move a luta de classes.

Comentários: A greve dos metroviários desperta na população uma certa revolta, todavia é importante observar que se trata de uma classe que viabiliza a compra e venda da mercadoria força de trabalho. Esta categoria está trabalhando na pandemia o tempo todo, contudo é considerada serviço essencial somente no que concerne à venda da força de trabalho, posto que os metroviários ainda sequer receberam imunização.


Comentários: Identidade e classe não se contradizem. É importante combater o identitarismo, uma vez que é essencialmente liberal; em determinados momentos, pode assumir posturas reacionárias até mesmo dentro da própria esquerda. Na obra “As armadilhas da identidade”, Haider fala sobre o problema que existe dentro da esquerda intitulado “identitarismo bolchevique”. Porém, gostaria de lembrar que, em países da periferia do capitalismo, a luta de classes é movida por movimentos ditos identitários, a exemplo dos movimentos negro e feminista. Na América Latina como um todo, estes movimentos populares que constroem a luta de classes têm um debate muito qualificado sobre tais condições. No Brasil, o movimento negro mobilizou atos durante a pandemia. Alguns autores franceses, a exemplo de Badiou, falarão sobre o sujeito e o processo de abstração como sendo, também, do indivíduo. Mark Fisher se debruçou sobre o processo de consciência e como a ideologia jurídica opera no sentido de minar a consciência revolucionária.


Comentários: Silas, penso exatamente igual a você no que diz respeito à identidade. Gosto de trabalhar com o conceito de protagonismo no processo de luta. Em países essencialmente marcados pela questão racial, o protagonismo tem de ser atribuído aos negros, sobretudo à mulher negra. Na medida em que se tem um trabalhador negro ou trabalhadora negra, estabelece-se um debate que envolve a questão racial, sendo que esta não o perpassa apenas lateralmente. Nesta confluência, a discussão racial possui um valor semelhante à questão do trabalho. Todavia, para se trabalhar com a junção classe, gênero e raça, deve-se entender que tudo isso se une na totalidade do modo de produção. Um dos elementos que determinava tal identidade era a compra e venda da força de trabalho, porém esta não está tão vislumbrada hoje em dia em razão da fragmentação do processo produtivo de compra e venda da força de trabalho.


Comentários no chat: referencial para essa perspectiva de identidade da classe trabalhadora?


Comentários: alguns debates ainda não são enfrentados. Desconheço algum referencial teórico que lide com esta perspectiva específica de identidade da classe trabalhadora. É possível que se chegue aos debates desta natureza a partir de autores da etnografia. Ruy Braga utiliza bastante um determinado autor, se não me engano é um etnógrafo que trabalha a etnografia a partir das condições específicas de trabalho.


Comentários: Há uma passagem no final de um livro de Angela Davis na qual ela defende que, para se falar em abolicionismo, deve-se falar sobre luta antirracista, antissexista e anticapitalista. É difícil se falar sobre uma sociedade livre de racismo ao mesmo tempo em que o capitalismo se constitui como modo de produção.


Comentários: Um problema básico é que temos muitos textos de identidade que tocam este identitarismo pós-moderno e se alicerçam em uma leitura fenomenológica de Hegel. Acho que este fato limita muito o debate, porque, a título de exemplo, se olharmos para o movimento feminista da FDUSP – essencialmente liberal –, este está fincado na perspectiva da compra e venda da força de trabalho feminina em condições igualitárias. Embora o movimento seja muitíssimo importante na FDUSP, isto não significa que as pessoas que o integram conseguem vislumbrar a questão de gênero na totalidade da produção. Quando se fala em classe, não se está referindo às classes A, B, C, mas ao processo produtivo. É importante se ter em mente que a classe trabalhadora é aquela submetida à dinâmica da compra e venda da força de trabalho. Acerca dos autores que trabalham com uma leitura marxista da sociedade, Wilson Onório tem um trabalho excelente sobre sexualidade, classe e raça.


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