RELATÓRIO - Outras formações (07/04/2022)
Relatório – Reunião 07/04/2022
TEXTO: GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial (1978) - Livro físico: 49-60; 185-192 e 203-221 - PDF: 15-26; 155-163 e 172-191.
Introdução do autor.
Jacob Gorender era filho de um casal de judeus ucranianos e socialistas que se mudam pra Bahia, ele nasce em Salvador em 1923.
Ingressa na Faculdade de Direito de Salvador e no PCB, mas logo abandona a faculdade aos 18 anos para lutar na Segunda Guerra mundial como voluntário da FEB, inclusive participa da Batalha de Monte Castello na Itália.
No retorno ao Brasil em 1945 se torna militante profissional chegando a assumir o comitê central do PCB.
Após o golpe militar em 1964 se abre uma polêmica interna no partido, a linha vitoriosa foi a do Prestes que defendia a resistência dentro da legalidade. Gorender e outros dirigentes são expulsos em 1967.
No ano seguinte fundam o PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) que combinava uma guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades.
Foi preso e barbaramente torturado. Na prisão encontrou outros militantes e passou a organizar estudos sobre a realidade brasileira de onde nasce a ideia de estudar a história do Brasil com destaque a escravidão.
Após sair da prisão se dedicou ao jornalismo operário (jornal classe operária, imprensa popular e voz operária) e aos estudos do marxismo, tradição comunista e história do Brasil. Até os 50 anos nunca tinha publicado um livro, o primeiro foi O escravismo colonial (1978) com mais de 600 páginas questionando a tradição acadêmica e a linha do Partido Comunista.
Mesmo sem curso superior foi convidado como Professor visitante no instituto de estudos avançados da USP. E depois publicaria os livros: A burguesia brasileira, Combate nas Trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, A escravidão reabilitada, Marxismo sem utopia, Brasil em preto & branco: o passado escravista que não passou.
Em 1994 recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal da Bahia. Em 1996 foi reconhecido com especialista de notório saber pelo Departamento de História da FFLCH.
Em resumo um militante histórico autodidata, de tradição marxista e polemista.
PDF 15-26, FÍSICO 49-60 (Reflexões metodológicas)
A interpretação histórica do Brasil respondeu a três linhas. A primeira linha elaborou o quadro de uma sociedade patriarcal ou feudal, privilegiando a classe senhorial e o latifúndio, seus principais representantes são Oliveira Viana, Gilberto Freyre pelo patriarcalismo, e Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré pelo feudalismo. A segunda linha estabeleceu uma sociedade colonial capitalista, com destaque para a história comercial, depois a estrutura exportadora e por fim com o “sentido da colonização”, aqui merece destaque Roberto Simonsen, Caio Prado Jr e Fernando Novais. A terceira linha de interpretação buscou unificar as duas primeiras linhas gerando as teorias dualistas, como “os dois Brasis”, o moderno e o arcaico, externo-interno, destaque para Ignácio Rangel e Celso Furtado.
“As ideias fora do lugar” de Roberto Schwarz fala da tensão na obra machadiana de uma elite com ideais liberais em uma sociedade escravagista. Maria Sylvia de Carvalho Franco “As ideias estão no lugar”, romper com uma dualidade acoplada (mecanicista) por uma unidade contraditória. Tréplica de Paulo Arantes “Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira” dualidade como base do pensamento social brasileiro. Toda a tradição cepalina, furtadiana, teoria da dependência, o ornitorrinco e a crítica da razão dualista.
Essas linhas de interpretação do Brasil encontraram dificuldades teóricas para localizar a escravidão das colônias no feudalismo ou no capitalismo, já que essas análises permaneciam externas as relações de produção do Brasil. Gorender propõe a desobstrução metodológica através da inversão radical do enfoque: as relações de produção da economia colonial precisam ser estudadas de dentro para fora, ao contrário do que tem sido feito, de fora para dentro (a partir da família patriarcal, do regime jurídico da terra ou sistema colonial).
Em verdade não é uma inversão do “fora para dentro” para de “dentro para fora”, mas sim um estudo das categorias e relações de produção das colônias. Digo isso, porque a dualidade interno e externo ainda faz parte do ideário que se pretende superar vindo das teorias circulacionistas, ao final do livro só se fala de modos de produção, a condição colonial é uma consequência das relações de produção.
Essa “Revolução metodológica” começou com Eugene Genovese, em A economia política da escravidão (1961) debate a lógica e os desdobramentos da escravidão no Sul dos EUA, segundo o autor a classe dominante do Sul teria desenvolvido uma ideologia, uma moralidade e uma ordem social próprias, diferentes do Norte capitalista. Ao diferenciar esse “sistema especial” sulista do Norte “capitalista” se introduz a problemática da formação social escravista e do seu modo de produção específico. A proposta de Genovese será aprofundada pelo historiador brasileiro Ciro Flamarion Santana Cardoso. Flamarion propõe um método de comparação das experiências coloniais para se elaborar uma tipologia das sociedades coloniais americanas. Entre esses modos de produção específicos estaria o modo de produção escravista colonial, este se baseava na produção escravista das colônias e se ligava através do comércio exterior ao capitalismo metropolitano.
Importante destacar que Genovese e Flamarion apenas propuseram uma hipótese sem desenvolvê-la pormenorizadamente. Somente com O Escravismo colonial (1978), de Jacob Gorender, que a teoria do modo de produção escravista colonial ganharia sua forma mais completa. A solução apontada por Gorender para superar as limitações de Flamarion seria seguir o método empreendido por Marx n’O capital ao estudar o modo de produção capitalista: sistematizar as categorias e leis gerais desse modo de produção, que se manifestariam sob formas particulares nos diversos países capitalistas.
Em O capital temos a teoria geral do modo de produção capitalista, com ela Marx nos fornece o método dialético categorial-sistemático. Para Gorender esse método permitiria o estudo de modos de produção anteriores ao modo de produção capitalista. Existe no marxismo um debate sobre essa possibilidade.
Acredito que seja possível, o método marxista permite a comparação das categorias e leis do modo de produção atual com sociedades anteriores para verificar o que não existia e o que precisou deixar de existir para a constituição do modo de produção capitalista. Além da investigação das relações de produções dos modos de produção anteriores.
A seguir Gorender trabalha com os conceitos de modo de produção e formação social. Segundo Gorender a atribuição ontológica dos seres humanos garante que as formações sociais não se reduzem aos modos de produção, compõem-se da estrutura (modos de produção) e superestrutura (formas de consciência e intuições). A formação social podem conter um ou mais modos de produção, dos quais um será dominante. E conclui que o objeto dessa obra, estritamente limitado, é o modo de produção escravista colonial, ou seja, o fundamento da formação social escravista e não toda ela.
PDF 155-163 ou FÍSICO 185-192 (Leis específicas).
Sobre o critério metodológico
Gorender começa com um trecho que bem resume seu argumento: “meu ponto de partida reside na convicção de que o tipo de utilização da força de trabalho não pode constituir fator contingente ou acidental em qualquer modo de produção. Pelo contrário, do tipo de trabalho decorrem relações necessárias absolutamente essenciais, que definem as leis específicas do modo de produção”.
Todo produtor direto, seja ele um escravo, um servo ou um operário assalariado tem a sua jornada dividida em trabalho necessário e sobretrabalho, porém cada um deles caracteriza um modo de produção pelas relações estabelecidas entre as classes na forma de exploração do seu trabalho. Ou seja, cada modo de produção envolve relações de produção que lhe são inerentes, regidas por leis próprias e inconfundíveis.
Segue-se um parágrafo em que Gorender concorda com a crítica ao “stalinismo” de que “as relações de produção não constituem uma essência autossuficiente, mas existem sempre em vinculação com forças produtivas determinadas”. Ele ressalta que o modo de produção é sempre a unidade de forças produtivas e relações de produção. Porque a relação entre o plantador e os escravos poderia determinar vários tipos de escravidão, desde a escravidão antiga, a escravidão doméstica e a escravidão colonial, porém o estudo das relações de produção aliado as forças produtivas específicas determinaria o modo de produção.
A crítica não faz tanto sentido, porque apesar da necessidade de aprofundar as forças produtivas, por exemplo a unidade essencial do modo de produção escravista colonial é a plantagem (ou plantation). Porém o que se fala não é que somente as relações de produção importam, e pode jogar fora as forças produtivas, mas sim que as relações de produção tem uma prevalência na determinação do modo de produção. E principalmente que não é o acúmulo das forças produtivas que geraria uma mudança das relações de produção.
Não é raro na historiografia brasileira considerar-se o escravo contingência ou mero expediente ditado pelas circunstâncias, destituído de influência decisiva nas relações de produção, na estrutura e na dinâmica da sociedade colonial. Gorender exemplifica com a obra máxima de Caio Prado Jr. Mais incoerente são os autores que tiveram o mérito de se preocupar com as relações de produção, como FHC, e consideram o escravo mero apêndice do modo de produção.
Essa posição artificial do escravo dentro de um modo de produção escravista fornece teorias em que o regime escravocrata colonial só se distingue do capitalismo em questão de grau, e não essência. Por exemplo um capitalismo atrasado, incompleto, em formação, híbrido e uma série de justaposições.
Sobre a teoria das leis econômicas.
p. 159: Com o capítulo seguinte, iniciarei a exposição das leis econômicas específicas do modo de produção escravista colonial, extraindo do caso brasileiro os elementos da fundamentação empírica (...), estou convencido de que a história do escravismo no Brasil proporciona suficiente base fatual à generalização teórica.
Gorender divide as leis econômicas em onimodais, plurimodais e monomodais segundo o critério de vigência nos modos de produção ao longo da história. As leis onimodais seriam vigentes em todos os modos de produção, podendo ser exemplificas pela “lei da correspondência determinante entre as relações de produção e o caráter das forças produtivas”. As leis plurimodais estariam em mais de um modo de produção, como a lei do valor, vigente nos modos de produção em que se apresenta relações mercantis. Por fim, as monomodais, são as leis econômicas específicas de um modo de produção. São, portanto, leis que identificam um modo de produção, como por exemplo a lei do mais-valor, a lei da formação da taxa média de lucro e a lei da baixa tendencial da taxa de lucro, exclusivas do modo de produção capitalista.
p. 162: Devo dizer ainda que as leis a seguir expostas não estão formuladas ao nível gnosiológico das leis de concomitância, também chamadas de leis de estrutura. Ou seja, não apenas dão conta da concomitância necessária de categorias da estrutura do escravismo colonial, mas definem relações essenciais entre essas categorias, com a direcionalidade que lhes é própria.
Portanto, não se trata de leis isoladas entre si, porém de um sistema de leis de um conjunto articulado que reflete teoricamente uma totalidade orgânica.
Essa parte das leis resvala no debate da transistoricidade, como uma essência na humanidade, o que é coerente com a reivindicação da ontologia do trabalho. O exemplo de uma lei onimodal é justamente a relação entre forças produtivas e relações de produção. É estranho chamar de lei o que seria permanente justamente pela sua explicação da tendencialidade. As chamadas leis onimodais e plurimodais não são tendenciais, elas nunca acontecem no abstrato, são sempre relações específicas dadas na história. Por isso nada nos diz leis gerais presentes em mais de um modo de produção.
PDF 172-191 ou FÍSICO 203-221 (Leis da inversão inicial de aquisição do escravo).
Entre as leis específicas do escravismo colonial está a lei da inversão inicial de aquisição do escravo. O escravista realiza um adiantamento de recursos para comprar o escravo, ao contrário do empregador capitalista que contrata o operário e o senhor feudal que tem o servo preso a propriedade dominial.
Esse adiantamento de recursos ocorre em qualquer das modalidade de aquisição do escravo, seja na captura, na compra ou na criação na unidade escravista, em todas elas há um gasto inicial. O bandeirante era financiado e abastecido com correntes, armas e munição para a captura do indígena ou escravo em fuga. A criança comprada como escrava ou nascida na unidade escravista necessitava de gastos com comida e vestimenta para crescer e começar a trabalhar. E a compra tem como inversão inicial o preço pago na alienação do escravo, adiantado pelo senhor de escravo.
A modalidade principal de aquisição é a compra, as demais são subsidiárias. Essas modalidades variam de acordo com a fase do escravismo e da unidade escrava. Por exemplo, o autor Barros de Castro estabelece uma classificação entre as regiões produtoras entre superdotadas, maduras e residuais. Uma região superdotada está na fase de descoberta de uma nova área com o solo fértil, produtividade elevada e grande exploração do escravo e muita compra de africano. Ela pode se tornar uma região madura que busca aprimorar a estrutura produtiva com melhorias no beneficiamento, armazenamento e escoamento da produção e aprisionamento de escravos fugidos. O segundo destino é transformar-se em uma região residual, devido à chegada de novas regiões superdotadas e à pressão das regiões maduras. Algumas regiões não conseguem se estabilizar como uma área madura e o trabalho do cativo já não se paga. Ao invés de vender os escravos e as terras , o senhor de engenho se acomoda ao declínio, reduz a compra de novos escravos e passa a aceitar “moradores” e trabalhadores livres (subclasses) na sua propriedade, o que faz com que decaia a área de exploração em relação a propriedade, as vezes até a criação de escravos. O senhor dessa região residual vende a sua mercadoria pelo preço que o mercado quiser pagar e se transforma no lendário senhor patriarcal.
Significado econômico da inversão inicial
Consideremos o processo mais regular e típico da inversão inicial: o da compra do escravo.
Na esfera da circulação a compra aparece como aplicação de capital-dinheiro. Temos três figuras distintas na circulação: o traficante, o plantador e o escravo. O traficante recebe o capital dinheiro do plantador em troca do escravo comprado. O capital dinheiro cobrado é superior ao investido pelo traficante no aprisionamento dos escravos, assim o traficante capta valores da esfera da circulação e desaparece completamente no momento da produção.
p. 175: Todos os modos de produção, sem exceção, são regidos pela lei da reprodução necessária da força de trabalho gasta no processo de produção. (...). O que singulariza o modo de produção escravista colonial é que, além da lei onimodal da reprodução necessária da força de trabalho, ele é regido também pela lei monomodal ou específica da inversão inicial de aquisição do trabalhador.
Temos dois dispêndios do escravista inteiramente distintos: o do preço de compra do escravo e o do seu sustento. O primeiro se deu fora do processo de produção e o segundo se dá dentro dele. O primeiro tem um caráter de falso gasto de produção, imposto pela natureza peculiar das relações de produção escravistas. Enquanto o segundo implica na cessão em favor do escravo de uma parte da sua produção.
p. 175: O trabalho escravo engendra uma aparência fenomenal diversa daquela derivada do trabalho assalariado. No mundo das aparências, o salário retribui todo o trabalho do operário, quando, na realidade, corresponde apenas ao trabalho necessário, ao passo que o sobretrabalho, cristalizado na mais-valia, é apropriado pelo capitalista sem retribuição. Com o escravo aparece o contrário: todo ele se manifesta sob o revestimento fenomenal de trabalho não retribuído, de trabalho não-pago.
Alguns autores como Barros de Castro defendem que essa aparência indeterminaria o processo de produção escravista, gerando maior estabilidade do que o capitalismo. Revoltas e Levantes negros. Aqui entra um debate sobre a ideologia, se ela é eterna e vinculadas as práticas essenciais da produção e reprodução do modo de produção, para a contratação da força de trabalho é preciso que a ideologia jurídica se assente sobre a ideia de igualdade. Enquanto uma ideologia escravista se assentaria sobre a ideia de desigualdade, que mantenha a desigualdade das condições de exploração. O escravo não revoltava para lutar por igualdade ou liberdade como a historiografia moderna descreve porque não estava colocada essa ideologia.
Inserção da inversão inicial no processo da economia escravista.
Parte do discurso abolicionista, como de José Bonifácio, Joaquim Nabuco e Burlamaque se assentaram sobre o argumento de que imensos cabedais são amortizados pela compra de escravos, que morrem, adoecem e se inutilizam. Representando uma redução do capital disponível, ao contrário da contratação de mão de obra livre que livraria o plantador do gasto com a inversão inicial.
p. 177: O fenômeno só entrou pelos olhos e possibilitou semelhante crítica quando a economia capitalista já desenvolvida na Europa proporcionou o devido contraste ao escravismo vigente no Brasil.
Esse pensamento se tornou uma escola de pensamento da escravidão, A Cliometria se notabilizaria pelo uso de modelos estatísticos para a investigação histórica, seus defensores viam essas técnicas como científicas e neutras, concentrando-se na interpretação dos dados para apreender a realidade história. Seu foco é o estudo da produção a partir do ponto de vista técnico, das proporções entre os fatores de produção necessários para a geração de um bem, no caso da escravidão colonial, temos um “empresário” que investe em escravos. Conforme essas premissas, poder-se-ia calcular a lucratividade da escravidão, levando-se em conta os fatores de produção como a força de coerção e o custo com a manutenção do escravo.
p. 177: Se considerarmos a relação capitalista-operário, verificaremos que o capitalista só paga o salário depois que o operário já criou um valor desdobrado em duas partes: o valor equivalente ao salário e à mais-valia. (...), antes de receber o salário, o operário criou valores que, de imediato, passam a pertencer ao capitalista. O adiantamento é feito pelo operário, não pelo capitalista.
O contrário ocorre com a inversão inicial de aquisição do escravo. O comprador terá desembolsado uma soma e ficará o escravo em seu poder, antes de obter dele qualquer produto, já efetuou um adiantamento substancial.
Esse exercício de comparação contínua entre o escravismo e o capitalismo Gorender pega de Marx, principalmente de O capital. Inclusive são inúmeras as citações de Marx à escravidão em O capital e seus escritos preparatórios. Primeiro porque o período de escrita do livro I coincide com os escritos jornalísticos de Marx e Engels sobre a guerra de secessão e abolição da escravidão fazia parte do debate conjuntural. Em segundo porque o método comparativo é frequentemente invocado por Marx ao comparar as especificidades do modo de produção capitalista em relação à outras formas produtivas.
É possível propor uma classificação dos usos de Marx em O capital e seus escritos preparatórios sobre o tema da escravidão. Primeiro as referências a escravidão antiga de Roma e Grécia, muito frequentes nos primeiros capítulos; depois os escritos relacionados a escravidão norte-americana; terceiro a constante estilo linguístico que remete aos jornais da época (“escravos brancos”), muito presente no capítulo sobre a jornada de trabalho; e por fim as referências comparativas entre as inovações capitalistas e suas formas anteriores. Aquele trecho clássico da dupla liberdade que usamos, o trabalhador precisa vender sua força de trabalho por um tempo determinado, porque se vende para sempre deixa de ser o vendedor para se tornar a mercadoria, de assalariado a escravo.
Na tentativa de explicar como o preço de compra do escravo entra na economia escravista alguns pensadores usam categorias elaboradas mediante investigação da economia capitalista. Como por exemplo o par de categorias capital circulante – capital fixo, e capital variável – capital constante.
Capital circulante x Capital fixo: O primeiro diz respeito ao processo de transferência do valor do capital ao produto, o valor do capital circulante é transferido integralmente e de uma vez a cada unidade de produto. Entrando em seu conceito os salários pagos e certos meios de produção (matérias-primas, combustível, lubrificantes, energia elétrica, etc.). O valor do capital fixo só se transfere ao produto por frações, gradualmente, por exemplo os equipamentos, instalações e instrumentos de produção.
Capital variável x Capital constante: O segundo par de categorias conceitua o comportamento de cada elemento do capital produtivo na composição do valor do produto. Enquanto o capital variável (compra da força de trabalho) aumenta de valor no processo de trabalho pois cria seu próprio valor e lhe adiciona a mais-valia, o capital constante mantém inalterado o valor nele preexistente, como todos os meios de produção.
Portanto o salário do operário é ao mesmo tempo capital circulante e capital variável pois transfere valor do capital ao produto de uma vez a cada ciclo produtivo e aumenta o valor no processo de trabalho.
Para Celso Furtado o preço de compra do escravo seria “um pagamento ao escravo”, imputável, portanto, ao fator trabalho, mas a contabilidade da manutenção corrente do escravo se faria gradualmente, à mesma maneira das instalações fixas.
F.H.Cardoso argumenta que tal solução se torna problemática porque “as próprias categorias que permitem a descrição e a explicação da economia capitalista aparecem contraditórias, às vezes nos termos, quando aplicadas à economia escravista.”
Essa é a conclusão do FHC, mas ele utiliza também essas categorias. No livro “Capitalismo e escravidão no Brasil meridional o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul.” ele propõe a caracterização do escravo como capital fixo e variável. Ou seja o escravo transferiria o valor do capital ao produto por frações (capital fixo) como os equipamentos e as instalações, mas ao mesmo tempo seu uso produtivo aumenta o valor do processo de trabalho (capital variável). Depois ele conclui que é uma solução problemática, mas a única possível para caracterizar a escravidão como capitalista.
O escravo como capital-dinheiro
O escravo funcionava, em certas ocasiões, como dinheiro em sentido estrito, como meio de troca ou meio de circulação. Nesse sentido, o escravo representa a soma pela qual foi comprado ou pela qual pode ser vendido. Também pode desempenhar a função do capital dinheiro emprestado a juros, como por exemplo o aluguel de escravos.
Porém impõe deixar claro que o capital-dinheiro não se identifica com o capital produtivo, o capital efetivamente operante na criação do valor e da mais-valia. E é o capital produtivo propriamente que dizem respeito as categorias de capital variável e capital constante, de capital fixo e capital circulante.
O escravo como agente subjetivo do processo de trabalho. (Debate sobre o sujeito em Althusser).
p. 182: Os autores que estudam a economia escravista limitam-se a designar o escravo como meio de produção. Pois, afinal, é ele comprado e usado pelo dono à mesma maneira de qualquer meio material incluído na produção.
p. 183: Com efeito, sob o prisma especial do processo de trabalho em si mesmo, o que Marx afirma do produtor direto, qualquer que seja a relação social de que se reveste, é completamente oposto. O escravo, assim como o assalariado, é agente subjetivo do processo de trabalho, é o seu sobretrabalho que cria mais-valia e faz girar o ciclo produtivo.
p. 184: Uma vez que o trabalhador é sempre o sujeito do processo de trabalho, vê-se o quanto é absurda a pretensão de Althusser e de sua escola de eliminar o sujeito humano da produção e da história (...). Em sua “leitura sintomal”, inferiu Althusser que os verdadeiros “sujeitos” seriam então as relações de produção. Logo, porém, ressalva: “Mas como se trata de ‘relações’, não cabe pensá-las sob a categoria de sujeito”.
p. 184: Não obstante, Marx reiteradamente referiu-se a homens e indivíduos, focalizou a exploração e a alienação sob o prisma deles e não só das classes sociais. (...). Os homens, individualmente considerados, só podem ser portadores de relações de produção se e quando, forçados ou não, as assumem subjetivamente e agem conforme a elas, motivados por elas. A objetividade das relações de produção nunca dispensa o momento de sua personificação, de sua introjeção na subjetividade das pessoas agentes, qualquer que seja a imagem mistificada que estas formem a respeito das próprias relações de produção.
p. 185: Em ensaios posteriores, Althusser voltou ao tema e introduziu emendas em suas formulações originais. Sim, os indivíduos sempre foram sujeitos, mas sujeitos ideológicos. (...). A ideologia “funciona” de tal maneira que impõe a forma de sujeito aos indivíduos humanos agentes das práticas sociais.
p. 186: O agente do processo de trabalho, que produz bens de uso e valores, não é um sujeito porque assim o interpela a ideologia, mas porque a própria estrutura da atividade econômica exige a interferência de sua subjetividade. Dito mais taxativamente: sem subjetividade inexiste atividade econômica.
p. 186: Concordo com o autor de Pour Marx em que a história é um processo sem Fim ou Fins. Em seu curso objetivo, regido por leis, a história humana independe de causas finais e sua explicação teórica dispensa a teleologia, seja sacra ou profana. Mas a história, movida pela luta de classes, é a história de sujeitos humanos, e estes assim são porque estabelecem fins para si próprios e agem de acordo com tais fins. Que a história tenha fins e os seus sujeitos os tenham, eis uma contradição inapreensível ao raciocínio lógico-formal. Mas essa contradição dialética nos obriga a concluir que a história é um processo com Sujeito e sem Fim(ns).
Em verdade há uma confusão entre sujeito da interpelação e agente subjetivo da produção, querer afirmar que é o trabalho dos produtos que move o modo de produção não está ligado ao meio específico como o capitalismo organiza sua força de trabalho. Essa confusão em parte tem a ver com a escrita de Althusser que fala que a interpelação do indivíduo como sujeito é eterno e não específico. A crítica de Gorender a Althusser é apressada e pouco entende o que o autor quis dizer.
Reposição da inversão inicial como dedução do excedente.
p. 186: A esta altura, podemos desfazer a falsa analogia entre o preço de compra do escravo e a categoria do capital fixo.
p. 188: Embora “empatada” como capital-dinheiro, a inversão inicial de compra do escravo não se encarna em nenhum elemento concreto do fundo produtivo do escravista. No processo real da produção escravista, essa inversão se converte em não-capital. Seria incorreto afirmar que ela é imobilizada, pois assim a incluiríamos no capital fixo. O correto é concluir que o capital-dinheiro aplicado na compra do escravo se transforma em capital esterilizado, em capital que não concorre para a produção e deixa de ser capital. Por conseguinte, cabe-nos concluir também que a inversão inicial de compra do escravo somente pode ser recuperada pelo escravista à custa do sobretrabalho do escravo, do seu produto excedente. Ela constitui um desconto inevitável da renda ou do que chamaria de lucro escravista.
p. 190: O preço de compra do escravo assemelha-se, no processo de produção, ao preço de compra da terra nua, ou seja, da terra natural, sem qualquer obra beneficiadora. Em ambos os casos temos um capital-dinheiro que não concorre para a produção, que, portanto, se converte em capital esterilizado, em não capital.
Essa comparação é do próprio Marx no livro 3 de O capital quando ele investiga a renda fundiária capitalista.
p. 190: A compra do escravo envolve um risco específico inexistente na compra da terra. Esta não desaparece e, não sendo cultivada, conserva ou até melhora suas propriedades naturais. O mesmo não sucede com o comprador do escravo. Além de ter de usá-lo imediatamente, pois o ciclo de vida do escravo tem limite inelutável, o comprador do escravo se submete sempre ao risco de perdê-lo muito antes de encerrado o período de vida produtiva: o escravo pode adoecer gravemente, ficar inválido para o trabalho, fugir ou morrer.
Aqui entra uma outra elaboração do Gorender que entra nesse cálculo mais a frente, “o alto custo da vigilância”, a escravidão era uma condição imposta e garantida à força, daí a necessidade permanente de vigilância e punição como forma de manutenção da produção. Em outras palavras a permanência da condição escrava se dá pela força direta ou indireta. A partir da década de 1980 a historiografia também passou a analisar as formas de violência indireta, alguns chegam a falar em não violência e inclusive participação do escravo na condição de agente consciente, um escravo contratante. Tem um capítulo em A escravidão reabilitada sobre isso.
Conclusão.
Ao fim desse capítulo Gorender expõe uma dessas leis específicas do modo de produção escravista colonial: “A inversão inicial de aquisição do escravo assegura ao escravista o direito de dispor de uma força de trabalho como sua propriedade permanente e simultaneamente esteriliza o fundo adiantado neste puro ato de aquisição, reposto à custa do excedente a ser criado pelo mesmo escravo.” .
Algumas conclusões são importantes, primeiro que o modo de produção escravista colonial não buscava a extração do sobretrabalho por meio do mais-valor, mas sim na forma de renda escravista. O acúmulo almejado não é de capital-dinheiro, mas de acúmulo de escravos, a riqueza escravista é acumular escravos. Pois o escravo produz a economia natural que mantêm a unidade escravista e as mercadorias vendidas no comércio exterior.
Algumas regiões não conseguem se estabilizar e o trabalho do cativo já não se paga. Ao invés de vender os escravos e as terras, o senhor de engenho se acomoda ao declínio, reduz a compra de novos escravos e passa a aceitar “moradores” e trabalhadores livres (subclasses) na sua propriedade. O senhor dessa região residual vende a sua mercadoria pelo preço que o mercado quiser pagar e se transforma no lendário senhor patriarcal do Gilberto Freyre, ele não é “benevolente” porque não tem condições de pagar pelo alto custo da vigilância.
O próximo capítulo ele estuda os efeitos da inversão inicial de aquisição do escravo. Mostra como era vantajoso ao escravista a menor amortização anual do preço de compra do escravo, induzindo no prolongamento da vida útil do escravo. A não ser que a rentabilidade conjuntural estivesse muito alta, compensando estafar o escravo e reduzindo o tempo de vida útil que era em torno de 7 a 10 anos.
| DHCTEM |
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