RELATÓRIO - Reunião 03/05/2021 - Para uma ontologia do ser social, Georg Lukács
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Relatório – Reunião 03/05/2021
Para uma ontologia do ser social
TEXTO: LUKÁCS, Georg. Prolegômenos e Para uma ontologia do ser social: obras de Georg Lukács. volume 13. Tradução Sérgio Lessa. Revisão Mariana Andrade. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.
Notas preliminares
1. A obra Ontologia do Ser Social é composta de duas partes. A primeira, denominada parte histórica, recupera o debate filosófico perpassando a filosofia neopositivista, existencialista, bem como as filosofias de Wittgenstein, Hartmann, Hegel e Marx. A segunda, também conhecida como parte sistemática desenvolve a discussão da ontologia materialista, a partir das categorias trabalho, reprodução social, ideologia e alienação. A recente edição da obra no Brasil (Coletivo Veredas) é dividida em dois tomos, sendo o Tomo I (Volume 13) e o Tomo II (Volume 14). Cumprindo, ainda, destacar que a referida organização nos citados volumes atende a uma exigência do próprio Lukács, que classificava a “Ontologia” como os volumes 13 e 14 das suas obras completas.
2 - Em 1956, Lukács estava com 71 anos e depois de várias intempéries pessoais, políticas e filosóficas, ele resolveu elaborar uma obra que seria intitulada Estética. O objetivo desta obra seria sistematizar investigações acerca da estética, considerando a estética com base marxista. Esse projeto seria elaborado a partir de três grandes volumes. Quando Lukács terminou o primeiro volume da Estética, porém, ele decidiu interromper o projeto para escrever uma Ética. Em sua reflexão, a Estética era menos importante do que a questão Ética. E, discutir uma Ética, para Lukács, seria uma forma de discutir as mudanças imprescindíveis para superar as deformações do socialismo na União Soviética. O ano de 1956 foi emblemático por ter sido o ano em que aconteceu o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), momento no qual, em 24 de fevereiro daquele ano, o secretário-geral Nikita Khrushchev (1894-1971) apresentou o famoso relatório responsabilizando Joseph Stálin (1878-1953) por torturas e perseguições de seus opositores no partido.
3 – No ano de 1960 Lukács tomou conhecimento da obra de Hartmann (filósofo idealista alemão), que marca o primeiro momento em que Lukács se deparou com a noção e uma formulação sobre “Ontologia” (Existe uma carta que comprova este fato. Trata-se de uma correspondência de Lukács com um dos seus editores). Em que pese às bases idealistas de Hartmann, sua obra conseguiu expor a noção de ontologia enquanto totalidade do mundo, como a ciência que estuda o ser, e que analisa o mundo ao longo da história. A partir de então, Lukács começou a escrever sobre os Fundamentos Ontológicos dos Valores Éticos. Portanto, Lukács começou a escrever a “Ontologia” no início dos anos 1960.
4 - O Capítulo intitulado “A falsa e a autêntica ontologia de Hegel” é o único capítulo da “Ontologia” que foi preparado para a publicação por Lukács e que foi editado e publicado anteriormente. Trata-se do último texto que Lukács deixou pronto para publicação. Nesse capítulo Lukács está realizando um balanço, um acerto de contas da relação dele com a filosofia em geral e com Hegel, em particular. Em verdade, Lukács que estudou Hegel de 1914 até 1960 estava tentando demonstrar o seu caminho até Marx e o marxismo, bem como demonstrar as diferenças radicais entre Hegel e Marx. Desta forma, ao longo deste capítulo (pp. 468-558), de 90 páginas (de um total de 1428 páginas), Lukács vai tentar apresentar, qual é a falsa e qual é a autêntica ontologia de Hegel, apresentando a concepção de história e de fim da história de Hegel.
Tabelas [omissis - não suportadas]
LUKÁCS
Tópicos – O que é história para Hegel? Como a história começa? O que é fim da história para Hegel? Qual é a falsa e qual é a autêntica ontologia de Hegel?
1. A partir da Revolução Industrial, iniciada por volta de 1860, a humanidade transitou do período da “carência para a abundância”. O desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção permitiu alcançar a produção dos bens e dos meios necessários para a satisfação das necessidades humanas. Muito embora, em virtude da apropriação privada da produção e do direito de propriedade privada burguesa, ao passo em que se produzia a riqueza social, gerava-se também o crescimento da pobreza e da miséria em escala gigantesca (tal como na lei geral da acumulação capitalista descrita por Marx em O’ Capital).
2. Com a Revolução Industrial, pela primeira vez na história da humanidade, a humanidade passou a compreender que é a humanidade que faz a sua própria história. Ou seja, que os homens e mulheres não são limitados ou determinados pela natureza. A humanidade transforma e se apropria da natureza, construindo a sua própria história. Desta forma, pela primeira vez, estavam criadas as condições matérias e subjetivas para uma explicação do mundo que não decorresse da natureza ou de uma concepção mitológica ou teológica - divina.
3. A Miséria Alemã. Ao contrário da Inglaterra (que fez uma revolução burguesa entre 1642-1689) e da França (cuja revolução realizou-se entre 1789-1815), a “Alemanha” era uma realidade feudal e absolutista (integrante da Confederação Germânica). “A situação da Alemanha na passagem do século XVIII para o XIX é, frequentemente, definida pelos historiadores como caótica. O despotismo de alguns governantes fazia-se sentir sobre a nação, que, fragmentada, era submetida a inúmeros despotismos de segunda ordem e que competiam entre si. Formada pela Áustria e pela Prússia, pelos príncipes-eleitores, por 94 príncipes eclesiásticos, por 103 barões, quarenta prelados e 51 cidades imperiais, o país compunha-se de aproximadamente trezentos territórios independentes. O governo central não possuía um único soldado e sua renda chegava, quando muito, a alguns milhares de florins. Não havia jurisdição centralizada, predominava ainda a servidão e a censura era aplicada drasticamente: qualquer leve indicação de tomada de consciência era reprimida com rigor”.
4. O ano de 1807 assinala a libertação dos servos e o início da reforma do Exército e da administração prussiana. A Prússia vivenciou um período de Monarquia Absoluta (1701-1848) e de Monarquia Constitucional (1848-1918). Hegel atravessou os reinados de Frederico II (1740-1786); Frederico Guilherme II (1786-1797); Frederico Guilherme III (1797-1840). A Unificação da Alemanha ocorreu somente em 18 de janeiro de 1871 (40 anos depois da morte de Hegel). E, o fim da Monarquia, somente se realizou na segunda década do século XX.
5. Considerando grande parte dos filósofos e pensadores modernos, a exemplo de Francis Bacon (1561-1626); Thomas Hobbes (1588-1679); René Descartes (1596-1650); John Locke (1632-1704); Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804), todos eles afirmavam que os seres humanos haviam sido criados por Deus, no ato de criação em conjunto com o universo, declarando a natureza imutável dos seres humanos. Para todos esses pensadores, a história humana era decorrente da história da natureza. Ao contrário destas concepções, Hegel é o primeiro filósofo que vai afirmar que são os seres humanos que transformam a natureza e fazem a história. E, para provar como os seres humanos constroem suas próprias histórias (e a história em geral), Hegel elaborou a Fenomenologia do Espírito, que é o primeiro livro de História Geral da humanidade (e que, no plano do idealismo alemão marca a sua ruptura com Schelling). Para Hegel, o passado determina o presente e o presente é a condição necessária para o desenvolvimento futuro, numa relação de causalidade (causa e efeito). Nesta obra, Hegel buscou demonstrar como o geist (espírito) humano evolui. Evidenciando a história como o desenvolvimento do próprio espírito, da sua própria história (do espírito). Hegel vai tentar demonstrar o processo de desenvolvimento do geist a partir da análise da Revolução Francesa (1789-1815).
6. A França experimentou praticamente um século de lutas revolucionárias (se considerarmos de 1789 até a Comuna de Paris de 1871, momento no qual o proletariado organizou-se politicamente de forma autônoma em relação à burguesia). A Revolução Francesa iniciada em 1789 com a grande rebelião do Terceiro Estado (artesãos, trabalhadores, camponeses e pequenos proprietários); contra a Monarquia Francesa (Segundo Estado: Nobreza; Primeiro Estado: Igreja) culminou na Queda da bastilha, em 14 de julho de 1789. A luta revolucionária na França perpassou por variados acontecimentos, dentre os quais a extinção do feudalismo, em 6 de agosto de 1789 (A noite do grande medo). No processo revolucionário francês foram formados dois grandes blocos, o processo da Assembléia Nacional Constituinte, a Convenção Nacional Francesa (1792-1795), a execução da família real em 21 de janeiro de 1793, na Praça da Revolução até o fim da revolução, com a derrota de Napoleão Bonaparte na Batalha de Waterloo, em 1815. Como afirmou um dos seus melhores historiadores: “a Revolução Francesa constitui, com as revoluções inglesas do século XVII, o coroamento de uma longa evolução econômica e social que fez da burguesia a senhora do mundo”. Destarte, foi a partir do processo revolucionário na França que Hegel pôde concluir que a humanidade faz a sua própria história.
7. Para Hegel, a história é determinada por um processo de conhecimento, no qual quem conhece é o espírito humano, não o corpo. A consciência humana que alcança a evolução e o conhecimento. A história é o processo de desenvolvimento do espírito humano, da consciência humana (A burguesia é a classe fundamental para Hegel; a razão burguesa é o espírito absoluto). A burguesia para Hegel é a classe social que coloca a humanidade no processo de prosperidade coletiva.
8. No dia 13 de outubro de 1806, um ano antes de publicar a Fenomenologia do Espírito, Napoleão havia anexado Jena (cidade alemã localizada no estado de Thüringen, no centro do país) e o acontecimento causou profunda impressão em Hegel: “Vi o imperador – esta alma do mundo – cavalgar pela cidade, em visita de reconhecimento: suscita, verdadeiramente, um sentimento maravilhoso a visão de tal indivíduo, que, abstraído em seu pensamento, montada a cavalo, abraça o mundo e o domina” (HEGEL, 13). Este documento trata-se da famosa Carta de Hegel ao filósofo Friedrich Philipp Immanuel Niethammer (1766-1848).
9. Em alemão o termo geist significa espírito. O geist é a consciência da humanidade. Uma espécie de “Opinião pública”; consciência coletiva, o pensamento de uma parte da humanidade; aquilo que a humanidade pensa acerca do mundo em cada momento histórico. Assim, a história consiste no processo de evolução do geist (Geist na Grécia Antiga; Geist na Idade Média; Geist no período Moderno).
10. Eis que surge uma questão fundamental: O que é a história para Hegel? A história é o processo através do qual o geist – o espírito humano – vai se desenvolvendo na medida em que este espírito vai se transformando em história. Dito de outra forma, a história para Hegel é um processo de conhecimento que é, ao mesmo tempo, um processo de evolução das relações sociais objetivas (transformação do mundo objetivo). E como é que o geist evolui, como a consciência evolui? Passando do conceito A, para o conceito B, para o conceito C. Para Hegel, a evolução da consciência é um processo gnosiológico, um processo que diz respeito ao conhecimento. Neste sentido, o processo de conhecimento determina a evolução objetiva. A história da humanidade é, portanto, um processo gnosiológico (um processo de conhecimento) e um processo objetivo (um processo ontológico). Assim, o processo gnosiológico determina o processo ontológico. É precisamente deste aspecto que advém o idealismo filosófico de Hegel. A concepção de que a evolução da consciência, dos conceitos, das idéias na cabeça dos seres humanos que determinam a evolução na vida social objetiva.
11. Há alguns setores que afirmam que Lukács é, filosoficamente, um idealista. No entanto, esta afirmação é absolutamente improcedente. Para utilizarmos uma terminologia hegeliana podemos denominar esta articulação uma “falseabilidade absoluta”. A Ontologia do Ser Social é uma ontologia materialista e não considera que a consciência e os conceitos determinam a realidade objetiva. Se fosse assim (para fazermos uma ironia) a obra de Lukács deveria, inclusive, se chamar “A Gnosiologia do Ser Social”. Do ponto de vista filosófico é nítido que Lukács é um materialista; um marxista (muito embora a sua obra da juventude História e Consciência de Classe seja considerada por muitos uma elaboração com certo matiz hegeliano). Mas, a influência de Hegel está também em Marx. Portanto, trata-se de uma crítica infundada. Como denomino um falso absoluto. Ademais, uma nota biográfica digna de destaque é Lukács, ao contrário de muitos filósofos, morreu sendo marxista (defensor da revolução e do socialismo) e advogando a perspectiva de renovação do marxismo.
12. Voltando à Hegel. No processo histórico, o geist vai conhecendo a si próprio e, ao conhecer a si próprio transforma a si próprio e transforma a realidade objetiva. Hegel considera que o mundo objetivo pode ser conhecido e pode ser transformado pelos seres humanos, na medida em que o processo gnosiológico avança (Hegel está olhando para a Revolução Francesa e para a Revolução industrial para compreender como se dá a evolução da consciência [a evolução do conhecimento]). A evolução do conhecimento se dá, em Hegel, de um ponto de vista lógico (de conceito a conceito). Ademais, a lógica da evolução do conhecimento é também a lógica da evolução do mundo objetivo. Desta forma, a história é um processo lógico, que é ao mesmo tempo gnosiológico (processo de conhecimento) e ontológico (processo de transformação da realidade / mundo objetivo).
13. Uma segunda questão imprescindível: O real é racional? Para Hegel o real é racional em virtude de dois aspectos. A) O processo de desenvolvimento objetivo do ser humano é determinado pela lógica do desenvolvimento da própria razão. A racionalidade do desenvolvimento do geist determina a racionalidade do desenvolvimento objetivo. B) O real é racional, pois existe a Aufhebung (Superação). No plano histórico, a Revolução Francesa representa a superação, momento no qual há a identidade entre o geist e o mundo objetivo (mudança no plano lógico, mudança no plano gnosiológico, mudança no plano ontológico). Ou seja, o real é racional porque existe uma identidade entre a razão e o presente (O real é o presente; o racional é a razão). Sobre a noção Hegeliana de que “o real é racional” – Johann Eduard Erdmann (1805-1892) denominou isto de Panlogismo (Em suma: o mundo é cognoscível. O real pode ser explicado racionalmente).
14. Não podemos deixar de considerar a crítica que Friedrich Engels (1820-1895) fez a esta tese de Hegel, que pode ser escrita de outra forma “tudo o que é real é racional”. No trabalho Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (1886), Engels expôs o seguinte: “Assim, aplicada ao estado prussiano da época, a tese hegeliana permite uma única interpretação: este estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é necessário; se, no entanto, nos parece mau, e continua existindo, apesar disso, a má qualidade do governo justifica-se e explica-se pela má qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos da época tinham o governo que mereciam”.
15. Para Kant, por exemplo, se existe um mundo objetivo exterior nós não podemos ter certeza e não podemos conhecer. A coisa em si é incognoscível. A razão humana é absolutamente imutável. A razão humana é formada pelos conceitos universais de espaço e tempo e isso é rigorosamente imutável (Portanto, a afirmação do novo Stephen Hawking, o cientista italiano Carlo Rovelli de que “o tempo não existe”, a partir da física quântica e da teoria da relatividade de Einstein – é uma afirmação antikantiana). Por outro lado, para Hegel, o que existe no mundo exterior, não só pode ser conhecido como pode ser transformado. A razão humana tem algo que é imutável, que é permanente, que corresponde à capacidade humana de conhecer. A capacidade de conhecer é a característica imutável da razão humana. Mas, o conteúdo da razão humana, portanto, aquilo que a humanidade conhece - o conteúdo da consciência humana - isto evolui, se transforma (Existe aqui uma contraposição muito clara entre Hegel e Kant que pode ser percebida no prefácio [posfácio] da Fenomenologia do Espírito). Assim, com base em Hegel, existiu uma razão escravista, uma razão feudal, uma razão escravista colonial, uma razão burguesa. Existirá uma razão proletário-comunista?
16. Quando Hegel discutiu a Dialética entre Senhor x Escravo ele estava pensando, mais uma vez, na Revolução Francesa. A dialética entre senhor e escravo significa dizer que quem está aprendendo (a consciência que evolui) é quem está fazendo o novo (aquilo que não existia antes). Aquele que está oprimido, por ser oprimido é obrigado a pensar o novo. E, portanto, é obrigado a evoluir. Aquele que oprime, quer manter o que já existe. O opressor tem medo do novo. Ele não quer o novo. O opressor, no caso, a Monarquia Francesa, não aprende (seu espírito não evolui). Ele só fica repetindo o velho. A dialética entre senhor e escravo surgiu para explicar como a Revolução Francesa (em cuja burguesia produziu o novo que) surgiu e como que ela representou um passo extremamente importante para toda a humanidade.
17. Observação importante: a concepção de história é a mesma do que a concepção dialética de Hegel. História e Dialética pressupõe a evolução lógica de um conceito a outro (no plano gnosiológico) e de um estágio a outro (no plano ontológico).
18. É preciso sempre ter em mente que Hegel nasceu entre o início da Revolução Industrial (1760-1776) e o início da Revolução Francesa (1789). Diante desta realidade sócio-histórica (de revoluções empreendidas pela burguesia e o capital), Hegel pôde concluir que não é a natureza que determina o ser humano. É precisamente o ser humano que transforma a natureza naquilo que o ser humano precisa para sobreviver.
19. Um exemplo referente ao processo gnosiológico em Hegel. Evolução do Conceito A – Conceito B – Conceito C (Botão-Flor-Fruto-Planta. Há contradição, mas há complementaridade). “O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se dizer que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra. E é essa igual necessidade que unicamente constitui a vida do todo”.
20. Uma terceira questão crucial: Como o ser humano faz a história? Hegel vai tirar a explicação da Revolução Francesa. Precisamente refere-se ao período de maio de 1789 – Início dos Estados Gerais. Ou seja, ele vai demonstrar a questão a partir do processo histórico, considerando o início de 1793, momento no qual toda a família real foi guilhotinada. Neste processo, Hegel vai perceber que aconteceu um processo de alteração da consciência das pessoas acerca do processo histórico. Os seres humanos aprendendo, mudaram seus comportamentos e imprimiram mudanças nas relações sociais (A humanidade vai conhecendo a si própria, portanto conhecendo o mundo no qual ela vive de forma cada vez melhor. A partir disto, vai mudando seu comportamento e alterando a realidade objetiva). Opera-se a cisão entre consciência (espírito; geist) e o mundo objetivo.
21. Para Hegel, a história é um processo lógico, gnosiológico (processo de conhecimento) e ontológico (processo de evolução do ser humano, do ser social). Assim, o mundo objetivo vai sendo transformado pelo ser humano, mas vai sendo transformado na medida em que a consciência evolui. O sistema filosófico hegeliano considera que o “mundo torna-se espírito”, enquanto totalidade da reprodução social e verdade absoluta. Para Hegel, tal como observou Marcuse (1978), “o mundo, na realidade, não é tal como aparece e sim como é compreendido pela filosofia” – ou seja, residindo aqui a precisa afirmação do idealismo hegeliano, no sentido da autoconsciência como autêntica realidade. Em outras palavras, significa afirmar, retomando Marx, a ideia como demiurgo do real (Demiurg des Wirklichen).
22. Uma quarta questão: Como é que a história começa? Para Hegel só é possível existir o conhecimento a partir do momento em que a humanidade funda a relação sujeito – objeto. A história começa quando a humanidade se pergunta sobre a vida, seus fundamentos e processos. O sujeito está perguntando acerca de um objeto que não é ele (O sujeito sai da esfera do “Eu”). A história começa no momento em que a humanidade passa a querer conhecer a totalidade do momento histórico (no qual ela se insere).
23. Nesse processo, o geist (a humanidade) se pergunta o que é a totalidade do mundo? Quando o geist – a humanidade - se pergunta essa questão, realiza três operações simultâneas, quais sejam: 1) O geist – a humanidade – transforma a história em um objeto que é um objeto externo ao sujeito. A humanidade exterioriza a si própria Entäusserung (exteriorização); 2) A humanidade se exterioriza, a partir daí ela transforma a história que ela cria, portanto, a história que é ela própria, transforma essa história em algo diferente, em algo que ela não controla, em algo que está fora dela. Portanto, a humanidade se aliena; Entfremdung (alienação); 3) Ao fazer tudo isso, a humanidade transforma essa história em um objeto. A humanidade se objetiva. O geist se exterioriza; se aliena e se objetiva. A humanidade se transforma em um objeto externo; o objeto passa a ser outro e a possuir leis próprias, incontroláveis. Ademais, funda-se um objeto; a humanidade constrói a si própria como objeto.
24. Portanto, a história da humanidade começa para Hegel quando a humanidade se exterioriza, se aliena e se objetiva. A humanidade se exterioriza, se aliena e se objetiva, fundando a relação sujeito e objeto. A história (da humanidade) começa com a exteriorização, a alienação e a objetivação do geist.
25. Na segunda parte do capítulo, Lukács (com base em Hegel) passa a explicar o problema da determinação de reflexão. O que isto significa? Significa que um ser só existe sendo reflexo do outro; um ser determina o outro ser. Hegel está pensando na relação Indivíduo x Sociedade. O indivíduo só pode ser indivíduo da sociedade. A sociedade só pode ser uma sociedade de indivíduos. O singular só pode ser o singular de uma universalidade. A universalidade só pode ser a síntese desses singulares, dessa singularidade. Há uma relação de determinação e de reflexão entre eles (Aqui podemos pensar, inclusive, a relação sociedade civil e estado político; forma jurídica e forma jurídico-estatal).
26. Para Hegel existe a relação de contradição e de complementaridade. Superando um determinado momento da história que é um momento contraditório, passa-se para outro momento histórico no qual não existe mais contradição, mas uma relação de complementaridade. Grécia Antiga x Período Moderno. Se não tem mais contradição não tem mais para onde ir. Para Hegel, ao atingirmos o patamar da sociedade burguesa, eis o fim da história. A consciência adquiriu um conteúdo absoluto, pois tem plena convicção daquilo que ela (consciência) é, se transforma em consciência absoluta (espírito absoluto).
27. A humanidade não tem outra superação possível. A sociedade vai se desenvolver sempre, mas dentro dos limites da sociedade burguesa. A história termina não porque a humanidade não vai se desenvolver, mas porque a humanidade atingiu o seu patamar burguês. O fim da história é a era do capital.
28. História para Hegel é a “Identidade da identidade com a não identidade”. A contradição vai evoluindo até chegar ao momento da identidade. A história tem coisas diferentes em contradição. Na medida em que a contradição vai evoluindo existe o processo de superação que transforma a contradição em equivalência, que transforma a contradição em complementaridade. Aquilo que era contraditório, portanto que era não idêntico, que era uma não identidade, na verdade, torna-se algo idêntico. É a humanidade reconhecendo a si própria. É a humanidade fazendo a si própria. A lei geral da história é que as contradições (a não identidade) evoluem até alcançar o patamar da identidade. A identidade (unidade) da identidade com a não identidade. O diferente se transforma no mesmo. Tomemos um exemplo (de matiz marxiano): Modo de Produção Primitivo – 40 mil anos atrás. Dissolução entre 5.500 e 2.000 antes de Cristo. Surge o modo de produção escravista até a queda do Império Romano. Entre os séculos X e XI o feudalismo já estava plenamente desenvolvido na Europa. A partir do século XVI começa o surgimento do modo de produção capitalista que irá se consolidar entre os séculos XVIII e XIX. O momento da unidade orgânica da história da humanidade. Ou seja, a comunidade primitiva (sem excedente; classes sociais nem propriedade privada) desenvolveu contradições que culminaram na primeira sociedade de classes (o escravismo clássico). A partir daí, as contradições evoluem para alcançar o nível da complementaridade (as sociedades de classes).
29. O que é a identidade razão – presente? Para Hegel o problema deve ser pensado a partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. Anteriormente a isso não existia a identidade entre razão-presente, pois a humanidade não tinha conhecimento, consciência acerca de si própria, do porque das coisas, do porque da humanidade. A humanidade acreditava que a sua evolução história era determinada pela natureza. Entretanto, com as referidas revoluções burguesas a humanidade compreendeu que o homem faz a história, transforma a história e se apropria da natureza. Logo, isto significa a identidade entre a razão e o presente. Pois o espírito evolui e a realidade objetiva também evoluiu. Assim, para Hegel a sociedade burguesa pôs fim às contradições, pois a partir dela passou a existir a complementaridade sujeito-sociedade e a identidade sujeito-objeto e a identidade razão-presente. Agora tudo é harmônico. Proclamam os burgueses: Liberdade, Igualdade, Fraternidade! A relação de diferença entre os indivíduos existe, mas ela se sintetiza numa totalidade harmônica.
30. (Breve Parêntese) Lukács. Reestruturação produtiva e fim do trabalho. Torna-se absolutamente fundamental considerarmos que a obra de Lukács foi fundamental no processo de enfrentamento teórico e política às teses do (suposto) fim da história e fim da centralidade do trabalho em virtude do processo de automação e da nanotecnologia. O debate da ontologia materialista foi fundamental para enfrentar a avalancha neoliberal e pós-moderna.
31. Em Hegel, o que é Concreto x Abstrato? Devemos partir da categoria do Ser – O Ser é o indeterminado. Tudo que existe é ser. Se você afirmar uma qualidade você está determinando o ser. O ser é preto. O ser, essa categoria mais universal, mais abstrata, é diferente do ser concreto. O concreto tem uma série de determinações (o violão é marrom, é pesado, tem um volume, tem uma forma, é feito do material específico - madeira). Em Hegel, o abstrato – é carente de determinações. O concreto é pleno em determinações.
32. Marx segue esta perspectiva hegeliana. Trabalho Abstrato e Trabalho Concreto. Trabalho Abstrato é universal. É igual para todos os indivíduos na sociedade capitalista regida pela relação de assalariamento. É carente de determinações porque abstrai o que o indivíduo é e porque abstrai o que aquele ato de trabalho é. Ele é simplesmente trabalho abstrato, venda de força de trabalho. O trabalho concreto é determinado, tem muitas determinações. Quanto mais universal a categoria para Hegel, mais carente de determinações, mais abstrata. Quanto mais particular a categoria mais singular, mais concreta, mais rica em determinações.
33. Ao longo do presente capítulo, Lukács está tentando demonstrar o caráter ontológico que separa radicalmente Marx de Hegel. Neste sentido, para Lukács existe uma falsa e uma autêntica ontologia de Hegel. 1) A falsa ontologia de Hegel. Quando Hegel compreende a história como uma evolução lógica, do espírito, como processo gnosiológico que determina as mudanças na realidade objetiva (no plano ontológico). Quando Hegel afirma o final da história no período burguês. E, portanto, declara que não existe mais história para além da burguesia. 2) A autêntica ontologia de Hegel. Quando Hegel afirma que o ser humano é uma história e o ser humano faz a sua própria história.
34. Importante considerar que a ideologia stalinista, em certa medida, defendia a noção de fim da história. O stalinismo advogava que não existiria mais alienação no comunismo, visto que não existiriam mais classes sociais nem propriedade privada (ou seja, sendo o comunismo uma espécie de reino dos céus). O stalinismo chegou a declarar a existência do comunismo na União Soviética. Lukács, porém, nunca defendeu a tese do fim da história. A “Ontologia”, inclusive, adveio para combater esta concepção. Para Lukács, na sociedade comunista, é possível que não existam alienações decorrentes da propriedade privada e das classes sociais, mas certamente existirão outros processos alienantes.
35. Retomando uma discussão anterior, em debate com o professor Marcus Orione – que me perguntou se os idealistas não analisaram o trabalho por serem (filosoficamente) idealistas. Àquela altura eu afirmei que sim e que não. Hegel compreende o trabalho. Mas compreende de maneira parcial. Hegel leu os clássicos da economia política. O trabalho para Hegel acontece na esfera do espírito, da consciência. Para Hegel existe o trabalho da teleologia. O trabalho termina quando a teleologia começa a ser objetivada. Por outro lado, o professor Orione fez um questionamento acerca da noção por mim afirmada acerca da superação por incorporação. Neste sentido, cumpre destacarmos que Aufhebung deriva do termo filosófico tradicional aufheben, cujo sentido em alemão consta “negar”, em oposição ao conceito setzen. Hegel transformou Aufhebung, tornando-o um conceito mais amplo, unindo negação e afirmação como partes de um todo – poderíamos afirmá-lo como “superação por incorporação” ou “incorporação superadora”.
36. A referida compreensão teórico-metodológica encontra-se em Marx, nos seguintes termos: “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada”.
37. Para Hegel o indivíduo burguês é atravessado pelo egoísmo individualista. Trata-se de um sujeito incapaz de atitudes altruístas. A essência do individuo burguês é a propriedade privada. Neste sentido, estado e o direito visam à proteção da propriedade privada. Por outro lado, a ética consiste em promover o “bem comum”. E, o que representa o bem comum numa sociedade burguesa? A preservação da vida (do indivíduo burguês) e da propriedade privada burguesa dos indivíduos que vivem nessa sociedade. Portanto, para Hegel o estado é o lócus da ética. A sociedade civil expressa o egoísmo absoluto do indivíduo. O estado burguês, porém, exprime o eticismo absoluto. A eticidade é a “adequação da sociedade com a idéia” (LUKÁCS, 2018, p. 475). A razão burguesa se identifica com a objetividade burguesa (Portanto, superar esta relação; ir para além é uma impossibilidade lógica). O estado burguês é o portador da ética e só pode existir como síntese dos indivíduos burgueses, que são a representação do individualismo, do egoísmo e da mesquinharia. Entre indivíduo e estado há uma relação de determinação de reflexão; de complementaridade.
38. Lukács expõe que “os limites específicos da visão hegeliana [...] mostram-se na transição da sociedade burguesa ao estado, na relação daquela com este” (Ibid., p. 481). Para Lukács, o sistema hegeliano não demonstra com real clareza o metabolismo da sociedade com a natureza. A primazia para com o geist inviabiliza esse procedimento ontológico materialista que apenas tornou-se possível com Marx. Nas palavras do filósofo húngaro, a sua recusa (e também de Marx) perante o idealismo hegeliano consiste no fato de ser “a própria doutrina das categorias tornada irreconhecível pelo modo logicista de explicação do sistema” (Ibid., p. 558).
39. Por fim, cabe evocar Gilberto Gil. O Fim da História. «Parabolicamará», 1992. Nas palavras do próprio autor: “A canção foi composta para responder à colocação do scholar nipo-americano Francis Fukuyama, que num livro publicado um pouco antes, defendeu a tese neoliberalista de que, com o final do comunismo – que, segundo ele, teria desaparecido –, a história teria também acabado. O livro se chamou justamente “O fim da História”, e foi escrito para provar o término da marcha das utopias. Para lançar minha contestação frontal a isso, eu fiz a advocacia do “eterno retorno”, tratando exatamente da questão de que tratava Fukuyama (a derrocada do socialismo enquanto configuração dos conjuntos nacionais do leste europeu), e trazendo à discussão o mito de Lampião (havia então a notícia de que, numa cidadezinha do Nordeste, tinham tentado tirar a sua estátua, o que gerou polémica, sugerindo-se um plebiscito em que o povo acabou preferindo mantê-la)”.
(A poesia vem na página seguinte).
Fim da História
(Gilberto Gil)
Não creio que o tempo Venha comprovar Nem negar que a História Possa se acabar
Basta ver que um povo Derruba um czar Derruba de novo Quem pôs no lugar
É como se o livro dos tempos pudesse Ser lido trás pra frente, frente pra trás Vem a História, escreve um capítulo Cujo título pode ser "Nunca Mais" Vem o tempo e elege outra história, que escreve Outra parte, que se chama "Nunca É Demais" "Nunca Mais", "Nunca É Demais", "Nunca Mais" "Nunca É Demais", e assim por diante, tanto faz Indiferente se o livro é lido De trás pra frente ou lido de frente pra trás
Quantos muros ergam Como o de Berlim Por mais que perdurem Sempre terão fim
E assim por diante Nunca vai parar Seja neste mundo Ou em qualquer lugar
Por isso é que um cangaceiro Será sempre anjo e capeta, bandido e herói Deu-se notícia do fim do cangaço E a notícia foi o estardalhaço que foi Passaram-se os anos, eis que um plebiscito Ressuscita o mito que não se destrói Oi, Lampião sim, Lampião não, Lampião talvez Lampião faz bem, Lampião dói Sempre o pirão de farinha da História E a farinha e o moinho do tempo que mói
Tantos cangaceiros Como Lampião Por mais que se matem Sempre voltarão
E assim por diante Nunca vai parar Inferno de Dante Céu de Jeová
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