RELATÓRIO - Reunião 22/04/2021 - Para uma ontologia do ser social, Georg Lukács (p. 442-447)
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Relatório – Reunião 22/04/2021
Para uma ontologia do ser social (p. 442-447)
TEXTO: LUKÁCS, Georg. Prolegômenos e Para uma ontologia do ser social: obras de Georg Lukács. volume 13. Tradução Sérgio Lessa. Revisão Mariana Andrade. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.
- Ponto 1 - A leitura se inicia no último parágrafo da p. 442 do livro (“Tratamos em detalhes esse exemplo...” até p. 443 (“... numerosas concepções ontológicas falsas”).
Comentários do trecho
- É a primeira vez que Lukács coloca de forma clara a questão do trabalho como central. Ele até agora passou pela filosofia discutindo de maneira ampla a ontologia em diversos autores, mas aqui aponta a questão do trabalho e também da teleologia, ambos elementos importantes de sua leitura.
- Ponto 2 - “Do significado do trabalho...” (p. 443) até “agora domina a força de atração dos idealistas” (p. 444)
Comentários do trecho:
- Esse trecho recupera um debate já iniciado pelo grupo em relação aos problemas do idealismo e também do materialismo mecanicista, que Lukács pretende superar.
- Foi então reformulada brevemente essa discussão em linhas gerais: Lukács aponta um problema em colocar a ontologia do ser social na perspectiva da ontologia da natureza, identificando uma com a outra. Embora elas tenham uma convergência (há uma relação entre a história humana e a da natureza), é preciso tomar cuidado quando se insere a ontologia humana na ontologia da natureza, para não se cair no erro de identificar valores históricos eternos (crítica marxista à filosofia alemã) ou no caminho materialista determinista.
- Foi questionado se quando Lukacs destaca essas duas teorias positivistas da história – o idealismo e o materialismo mecanicista, ele estaria se reportando a um problema clássico da filosofia: fundamentar materialmente a liberdade. Antes de Marx e até mesmo de Hegel para algumas leituras, havia uma dificuldade que era entender o devir como algo dado pela natureza, sendo que a natureza possui regras químicas, físicas, matemáticas rigidamente dadas. Nesse campo, a liberdade seria apenas um falso livre-arbítrio, por força de não acessarmos essas regras por completo. Assim, alguns historiadores, dentre eles Rousseau, indicam que os processos históricos retratam movimentos inevitáveis, determinados, sem espaço para liberdades individuais. De maneira oposta, o idealismo sustenta que a liberdade é um atributo da alma, divino, descolado necessariamente do mundo material, e, portanto, não está aferrada a essas regras matemáticas mecanicistas. Essa oposição é recorrente na história da filosofia: por um lado, a diminuição da potência das liberdades individuais diante de um devir da natureza e de um devir histórico; e de outro lado uma visão que tende a superestimar a liberdade. Nesse contexto, Lukács parece propor que o trabalho torna possível fazer a conexão entre natureza e liberdade, o trabalho como a realização da liberdade (mas não o trabalho dentro do capitalismo). Ele fala então de uma ontologia para apontar que a natureza tem mesmo uma determinação que o idealismo não reconhece, mas que o elemento do trabalho é aquele que pode subverter a falta de liberdade.
- Considerando as proposições de Lukács até aqui, essa leitura específica ainda não foi feita dessa forma e nesse momento do texto, mas pode ser que seja introduzida mais à frente pelo autor.
- Ponto 3 - “Em Hartmann essa confusão...” (p. 444) até “... na teoria do movimento dos átomos” (p. 445)
Comentários do trecho:
- Nesse parágrafo, Lukács trata de um problema decisivo e que está no cerne da oposição que existe entre ele e Althusser: a questão da gênese para a ontologia. Quando ele desenha a “progressão” da ontologia do ser natural inorgânico, para o ser natural orgânico, até o ser social, fica muito central que, para ele poder diferenciar cada uma dessas dimensões, ele precisa identificar o que caracteriza cada uma delas. Essa diferença, para ele, está ligada à gênese. Quando não há condições de traçar a gênese, como no caso das moléculas, a forma como esses seres se dão na natureza é o que indica essa diferença. Ele usa essa mesma análise para o ser social. É impossível retraçar historicamente o momento em que o ser social surgiu, mas ele recompõe isso ontologicamente a partir da diferença entre o ser social e o ser natural orgânico. Na visão de Lukács, Hartmann não presta atenção ao significado ontológico da questão da origem e isso gera dificuldades com relação à ontologia.
- Se no ser orgânico e inorgânico, a gênese está na composição diferenciada das moléculas tal como elas se dão, no caso do ser social, como também é impossível determinar esse momento exatamente, isso seria o trabalho? Sim, a gênese do ser social é justamente o trabalho, mas isso só vai aparecer mais à frente na obra.
- A menção de Epicuro e Demócrito é também interessante, porque remonta à discussão sobre até onde a filosofia consegue chegar, além dos parâmetros da ciência, além do apenas “filosofar”.
- E a oposição entre Epicuro e Demócrito também tangenciava o tema da liberdade. Então, mesmo quando se faz uma crítica que reabilita a liberdade, como na oposição entre esses dois autores, ainda assim não se preocupa com a gênese. Epicuro tem uma proposta de gênese e isso o diferencia do Demócrito.
- O parágrafo anterior aponta uma bifurcação entre duas formas “erradas” de responder à ontologia, segundo Lukács: o mecanicismo e o idealismo. Nesse trecho, ele parece continuar apontando o erro, recuperando a oposição entre dois filósofos cuja discussão foi também o primeiro passo na trajetória de Marx, em seu doutorado.
- Há uma proximidade e uma diferenciação entre Epicuro e Democrito, mas o primeiro avança na discussão para dimensionar o problema da liberdade humana. O átomo era o elemento central da formação das coisas e poderia formar outros corpos. Se um átomo pode se transformar em outros corpos, é possível pensar a transformação humana.
- Na relação entre história e ontologia, Lukács está discutindo Hartmann, um filósofo idealista e racionalista, na década de 60. Ele foi o primeiro a usar o termo “ontologia”. Lukács fica impressionado com esse termo e passa a desenvolver essa discussão. Mas para compreender esse percurso, é importante recorrer a outros textos de Lukács e os desafios que ele estava buscando resolver, sobretudo o de entender como a Alemanha produziu filósofos tão proeminentes no campo do idealismo, mas também deu base para uma filosofia irracionalista. A grande diferença de Lukács em relação à filosofia clássica e aos idealistas é que não entende a ontologia como estudo do ser em abstrato ou como ser eterno, mas como o estudo do ser no “complexo dos complexos”, do ser na história.
- Dúvida: Hartmann não poderia tratar do trabalho porque era um idealista. Mas ser idealista significa não colocar o trabalho, ainda que seja como idealização? Hegel não teria feito isso, tratando do trabalho de forma idealizada?
- Para Lukács, Hartmann não podia levar às últimas consequências essa discussão sobre o trabalho na ontologia. Apesar de ser enunciado no idealismo, o trabalho e outras categorias centrais da ontologia aparecem, mas não como propostos pelo materialismo.
- Ponto 4 - “Para o novo tipo de ontologia...” (p. 445) até “... poderia mesmo ser proveitosa para aquela. ” (p. 445).
Comentários do trecho:
- Aqui há a questão sobre qual o momento em que se dava a ciência e de como o filósofo reflete com base nos elementos científicos existentes em seu tempo. Foram mencionados os vídeos compartilhados com o grupo sobre indícios históricos de que o trabalho humano existiu mesmo antes do homem, ontologicamente. E isso poderia desmentir (hoje, com as descobertas científicas) as teorias de que a gênese da ontologia do ser social estaria no trabalho.
- Por outro lado, a postulação de Lukács não depende exclusivamente disso. Isso que ele chama de “gênese” é um processo que leva vários milênios e que transcende o próprio surgimento da espécie homo sapiens, porque essa espécie também dependeria de um certo desenvolvimento e organização do trabalho para ser considerada “ser social”.
- No entanto, Lukács parece estar trabalhando dentro de um esquema hegeliano de evolução da história. Primeiro, ele se coloca a questão social do trabalho, que entendemos ser histórica, e como ela deve estar sistematicamente ligada à uma gênese do inorgânico que que vai até o ser social, a partir de uma mudança de qualidade para o novo. Isso lembra a leitura hegeliana de acúmulo quantitativo e salto qualitativo. E nesse sentido, considerando o que se sabe sobre o processo evolutivo (não linear, inclusive com a “devolução”), parece haver lacunas nessa percepção. Além disso, a especificidade do trabalho no capitalismo e outros modos de produção em que há divisão e exploração de classe, não é em relação ao processo genético, mas sim à sua conformação social histórica de exploração. Sua decisividade está nesse sentido.
- Lukács cria para si um problema filosófico: se você é um hegeliano, realmente há um processo de transformação. Mas se você trata sob o aspecto genético, existe algum instante em que há mesmo o salto qualitativo, embora não seja sempre possível determinar esse instante. O texto traz essa questão: o que pode ser descoberto pela ciência e o que a filosofia pode entender a partir dessas descobertas?
- O que significa tocar ontologicamente o problema da gênese? Lukács está discutindo como Hartmann “quase” chega a uma ontologia, mas não o faz por não tratar seriamente da questão da gênese. Mas o que significa isso? O que se compreende por gênese? Não parece ser um registro histórico, nem metafísico.
- Uma coisa que incomoda no texto é que em alguns momentos Lukács opõe ontologia à ideologia. Ontologia seria a verdade realmente existente. E isso incomoda porque ele parece recuperar uma perspectiva filosófica que divide o mundo da verdade e o mundo da opinião, e isso poderia ser entendido também como idealismo. Pela dialética, a própria verdade é construída dialeticamente, algo que o próprio Hegel já aborda. Na medida em que Lukács recupera um pouco esse esquematismo hegeliano, ele cria para si a armadilha da oposição entre conceito e história. A filosofia é um modo de produção de conhecimento que não é entendida como conhecimento pela ciência moderna, porque passa por abstrações e colocações hipotéticas. Com a modernidade e a capacidade da ciência de responder questões que a própria filosofia se colocava (como a gênese), a filosofia tenta lidar com a sua impossibilidade de “reviver a história” ou voltar no tempo, usando abstrações que são conceituais. Hegel fez isso muito bem e em certa medida também Marx, que compõe suas categorias de modo lógico inicialmente e depois introduz processos históricos. Então há uma abordagem “logicizante” e outra que é mais uma crônica da história tal como ela ocorre, e por vezes essas linhas não convergem. Lukács traz um sintoma dessa não-resolução, desse impasse, porque a abordagem não é materialmente histórica.
- Recuperando o texto, a noção de ontologia como o estudo do ser na história indica que não há contradição entre ontologia e história. Portanto, há uma intenção de Lukács em analisar uma ontologia do ser social e que demarca a diferença fundamental em relação aos filósofos anteriores a ele, inclusive Marx. As descobertas científicas recentes não parecem invalidar as descobertas marxistas sobre o caráter ontológico do trabalho, mas reafirmá-lo na conformação do ser social. Por isso, não há um problema com o advento da sociedade de classes e da sociedade capitalista – o trabalho é um complexo que é ao mesmo tempo mediação/intercâmbio com a natureza e o mecanismo que produz valor. Não há problema nisso porque o método de Marx não é o lógico, mas o da negatividade dialética.
- Quando Lukács fala de Hartmann nesse trecho, ele parece criticar a falta de clareza entre ciência e ontologia em Hartmann. Em Lukács, o ser – por ser social – não vai ser descoberto no microscópio, então há um limite da ciência. Parece que a pergunta pela ontologia (na filosofia) é diferente daquela que é feita na ciência
- A questão aqui não é tanto se a ciência pode contradizer ou não o que Lukács propõe. Mas que a própria colocação “ontologia do ser social na história” recompõe um historicismo hegeliano (história dos conceitos) e isso em Marx é contraditório, porque ele faz inicialmente uma história dos conceitos e depois uma história das classes e da sua relação/luta. E é esse o ponto que faz com que o materialismo de Marx seja mesmo materialista, porque a história é a história da luta de classes. A problemática que Lukács coloca, ao querer ligar liberdade do fazer humano e “determinismo natural”, é procurar resolver esse tema com a categoria (conceitual) do trabalho. E isso não é o que Marx propõe, já que o trabalho passa a ser decisivo somente quando ele é explorado, não como só como relação com a natureza.
- É importante ter em conta que na “Ciência da Lógica” de Hegel, a noção de “conceito”, como usada por ele, não é representação do objeto, mas a verdade da substância (relação dialética em si e para si), algo mais complexo do que a acepção mais comum do termo.
- Ponto 5 - “O significado desse complexo de problemas...” (p. 445), até “...aparato de pensamento da gnosiologia. ” (p. 446)
Comentários do trecho:
- A questão da gênese precisa estar colocada por que é preciso responder à causalidade e a corrente dos nexos precisa começar em algum ponto (para não termos uma causalidade não causada). Para os positivistas, isso não é uma questão, e isso incomoda Lukács porque ele parece ter um respeito por essa problemática tradicional. Nesse ponto, ele parece concordar com Hegel no sentido de que não pode haver ponto cego no conhecimento, como coloca Kant (há coisas inacessíveis ao nosso conhecimento – a coisa em si). Ele se refere a esse campo não fenomenológico porque é núcleo duro da fundamentação posterior de uma ética, passando por uma filosofia da natureza, dada sua postura crítica ao relativismo. Lukács coloca a questão da gênese, então, porque é preciso construir uma evolução sistemática, para definir o que é um ser social e disso extrair uma ética.
- Uma discussão que atravessa a leitura o tempo todo é a oposição entre um ponto de partida gnosiológico e um ponto de partida ontológico. Pode ser considerada positiva essa proposição de Kant de que parte da realidade (em si) é “desconhecida”. Um ponto de partida científico de que há o desconhecido e que ele deve ser investigado. A crítica possível é sobre a ideia de que “a coisa em si” seria impossível de ser conhecida. Isso aparece em Weber, que assume essa impossibilidade e propõe tipos ideais para viabilizar uma aproximação dos objetos do conhecimento. O marxismo propõe que é possível conhecer a realidade, dentro das múltiplas causalidades, traçando as principais que influenciaram e resultaram em algo que tenha acontecido. Ao recusar o ponto de partida do Kant de que há um limite ao conhecimento humano, o Lukács cai ou na metafísica ou no empirismo.
- O pensamento não acessa a coisa-em-si, mas a ciência acessa?
- Para alguns, não se chega à “coisa em si” nunca, mas para outros, se chega ou é preciso que se chegue.
- Talvez a ciência acesse partes da coisa em si, mas não “a” coisa em si sua totalidade.
- Não é que seja impossível conhecer, mas que as coisas em si não podem ser conhecidas. Mas Hegel recusa isso, a ciência/filosofia tem que ser ambiciosa e chegar à ideia absoluta, quando conheceremos tudo ou ao menos tudo que interessa. É interessante considerar isso em relação à problemática da ontologia – o mundo não é mesmo um livro aberto. Os saberes são também construções sociais e isso incomoda os iluministas e até alguns marxistas que entendem a ciência como o único saber legítimo e o resto como crendice. Mas isso não é verdade, a experiência social mostra o contrário. Um exemplo é a arte – um saber social vivido cotidianamente, mas que a ciência não alcança, ainda que não a negue. A posição de que a ciência é um saber entre os saberes e isso pode ser um modo interessante de criticar a problemática da ontologia.
- Em relação ao Kant, apesar de ser criticado, ele coloca problemas muito complexos. Kant está buscando as condições do saber e defender o primado da racionalidade, do lugar da filosofia em relação a outras perspectivas (religiosas, etc.), e reduzir o Kant a apenas as duas frases do texto de Lukács também é problemático.
- A questão da gnosiologia e ontologia, como lida no texto de Lukács, às vezes é prejudicada pela leitura que não leva em consideração a materialidade da ontologia que ele propõe, no momento em que ele propõe. Seria possível uma solução de compromisso entre ontologia e gnosiologia que é o fato de que, passando para a materialidade, a história/luta das classes, quando há a transição de modos de produção, seria possível observar essa mudança qualitativa? Se fizéssemos uma escolha diferente e mudarmos a gênese ontológica de ‘trabalho” para “produção”, não seria possível uma convergência entre ontologia e gnosiologia?
- O ponto é que Lukács, quando cita Kant, está falando sobre a possibilidade de dizermos que algo é “com certeza assim”, que não admite contraditório, idealismo e etc. Ele busca algo inegável, que não possa ser apontado como “ilusão”. No fundo, Lukács está dizendo que, se é impossível conhecer a coisa em si, cada um olhará a realidade a sua maneira, e o trabalho resolveria isso pela sua objetividade, de certa forma. Para Marx, o conhecimento é também parte da luta de classes e os saberes são socialmente construídos. O problema com a oposição gnosiosologia e ontologia, se pensarmos na 2ª internacional e no stalinismo, é a noção de que “há um conhecimento único e que seria o ‘nosso’”. Quase uma inversão do sinal. Então mudar o termo (de trabalho para produção), não parece resolver o problema de que essa oposição é pouco dialética.
- O problema é atar o conceito de gnosiologia e ontologia ao que as determina a ciência burguesa. Tanto Lukács e Athusser deram um passo, mas podemos dar outros.
- Parou na página 447 (“Que Hartmann não passe...”)
Próxima reunião: leituras das p. 447-457.
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