RELATÓRIO - Reunião 23/09/2021 - Para uma ontologia do ser social, Georg Lukács
Relatório – Reunião 23/09/2021
Para uma ontologia do ser social
TEXTO: LUKÁCS, Georg. Prolegômenos e Para uma ontologia do ser social: obras de Georg Lukács. volume 13. Tradução Sérgio Lessa. Revisão Mariana Andrade. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.
Voltamos ao parágrafo anterior para situar o texto. O esforço de Lukács então aqui tem a ver com a discussão de se haveria alguma tentativa de reabilitação de Hegel, ou em que medida essa reivindicação ou recepção seria feita. Referência à p. 523, num resumo da dialética hegeliana:
Esse âmago ontológico-dialético da filosofia hegeliana está em manifesta oposição para com a estrutura hierárquico-lógica do seu sistema. Hegel sentiu por vezes essa opositividade, mas ele, contudo, de modo consciente, a afastou seguidamente e se agarrou à unicidade lógica da estrutura de sistema. Assim, repete, no início da lógica do conceito, que a essência surgiu do ser, o conceito surgiu da essência e, portanto, por último, que surgiu do ser.
Preocupação recorrente do Lukács em tentar aplicar, nessa recepção filosófica do Hegel (em excesso ou não), o princípio marxiano da primazia do material sobre o ideal. Tento fazer a associação entre ontologia e materialidade, em oposição a idealismo e gnosiologia ou logicismo.
Hegel, por um lado, pela dialética, vai defender que a primazia metodológica está no ser (materialidade). Por outro lado, Hegel se contradiz em uma inversão, conforme Marx mesmo indica no 2º posfácio de O capital.
Esse é o esteio todo do trecho a ser estudado no dia.
(Além disso, há uma dificuldade acerca do trecho que foi riscado do original. Há edições que suprimem esse trecho, outras que não, e outras que incluem o trecho sem indicar que foi riscado. Por que Lukács teria riscado esse trecho é algo que necessariamente se põe para nós.)
COMENTÁRIO. por que acha que Lukács riscou o trecho?
COMENTÁRIO: Na minha opinião, porque ficou mal escrito, mesmo. Ele tenta refazer o argumento melhor mais adiante. Lukács insiste que devemos superar a contradição de Hegel. A maneira como a dialética se desenvolve não pode ficar aquém de uma consideração gnosiológica (ou ideal).
Trecho: “a concretude é o critério da verdade...”. Isso se reflete em toda a lógica de Hegel.
Lukács diz que não podemos ficar com a visão turvada pelas identidades entre sujeito e objeto. Lukács então defende uma separação mais profunda do que em Hegel entre cognoscível e cognoscente. Há um desenvolvimento do mundo independente do desenvolvimento das ideias.
Então entra nas definições, tais quais aparecem em Hegel, para exemplificar o caso. Hegel é celebremente conhecimento por se recusar a usar definições, pois são atalhos antidialéticos. Lukács aproxima isso com a abordagem metodológica de Marx em Contribuição... passagens entre geral e particular, abstrato e concreto.
Lukács concorda com Hegel no rechaço da posição moderna (Berkeley e Kant) que entende que a razão tenha limites cognoscíveis. Trecho: “desde Kant...”.
Ponto principal do argumento de acordo com Lukács: como Hegel desenvolve as determinações de reflexão. É um uso muito básico e quase literal do fenômeno físico (algo que sai de um lugar, toca em outro meio e retorna para si, mudado). As determinações vão sendo construídas nesse processo.
Entra na dicotomia entre entendimento e razão. Entendimento (em Kant): conhecimento mais voltado às questões práticas e fenomênicas. A razão se eleva a partir disso mirando o mundo numênico e entendendo aí as limitações da própria razão. Já em Hegel, pela dialética, é diferente. O entendimento é a primeira morada da teoria, mas opera junto com a razão no desenvolvimento da consciência. Embora a razão se eleve para acima do entendimento, depende dele como esteio.
Filosofias clássicas tendem a dar mais dignidade pra razão do que pro entendimento. Hegel discorda. As determinações de reflexão não pode começar pela razão, mas pelo entendimento. Razão sem entendimento não é nada, mas o oposto não é verdade.
Lukács tenta salvaguardar a pretensão totalizante do conhecimento em Hegel, mas tendo em vista a primazia metodológica da materialidade.
Leitura e discussão
[pp. 524-525]
“Deve-se aqui, segundo a possibilidade, fazer justiça à concepção ontológica original de Hegel (...)” até “essa completude é a totalidade do conceito”.
COMENTÁRIO: quer entender melhor essa coisa do absolutamente concreto e totalidade real em Hegel A princípio são colocações absurdas, mas pra evitar a convergência disso com o materialismo e a localização disso no idealismo, como acontece? O que é esse real concreto no Hegel
COMENTÁRIO: esse caminho acontece na concessão que Lukács faz na limitação da identidade entre sujeito-objeto. Lukács categoriza algumas coisas de um jeito que não acho que Hegel faz. Ex.: o absoluto e o concreto em Hegel são coisas que são preenchidas de sentido e ganhando conteúdo conforme o Espírito avança, até se tornar absoluto. A consciência vai ganhando determinações de reflexão. Consciência é ativa, mundo é passivo, e os dois se transformam na reflexão, e a cada reflexão há mais amplitude e profundidade até a identidade entre sujeito e objeto na totalidade.
COMENTÁRIO: começo a entender porque Lukács riscou esse trecho. Ele está de fato contrário à crítica que Marx faz a Hegel, pelo menos neste parágrafo. Para Marx, Hegel confundiu a gênese do concreto com a gênese do concreto pensado. E aqui Lukács admite a possibilidade que o concreto pensado seja o concreto real. Parece que Lukács tenta atribuir a Hegel uma materialidade que ele não teria (Marx vai por aí). A ressalva de Lukács de que a identidade sujeito-objeto não teria a nada a ver é inócua. É precisamente esse o problema.
COMENTÁRIO: Lukács tenta se safar por um procedimento lógico do Hegel Conforme as coisas se desenvolvem, tornam-se mais reais (isto é, racionais, hegelianamente). Lukács: se então a consciência ganha realidade conforme é refletida no mundo concreto, então este tem uma hierarquia lógica superior, o que o torna o critério de verdade da consciência. A fonte legitimadora da consciência é o próprio concreto, porque é ali que ela se desenvolve. No entanto, isso presume uma cisão categórica entre sujeito e objeto.
COMENTÁRIO: Mas meu ponto principal é que Lukács não pode fazer essa operação sem considerar que o concreto é ideal. Lukács parece ignorar isso, assume o concreto marxiano como sendo hegeliano.
COMENTÁRIO: Sim, apenas veremos que Lukács tenta escapar dessa dificuldade por um mero artifício lógico, conforme dito antes.
Leitura: “Já que nosso interesse é ontológico (...)” até “direta dependência de sua ontologia autêntica — consciente ou inconscientemente”.
COMENTÁRIO: parece que nesta segunda parte ele está sendo fiel ao Hegel, considerando a relevância da determinação para a dialética. Em Hegel a contradição determinada é a única que dialeticamente promove movimento de fato. Especialmente levando em conta a negação determinada.
COMENTÁRIO: Parece que a dificuldade de Lukács está em equilibrar a dialética de Hegel com a crítica da inversão de Marx de maneira eminentemente filosófica. Tirante a parte do valor, Marx não trata muito da dialética em um ponto de vista filosófico. Engels se ressente de não terem escrito sobre dialética, embora algo nesse sentido exista na Ideologia Alemã. Se seguimos Hegel, a tendência é dar concretude ao pensado, ser idealista no sentido da inversão do Marx. Mas Lukács quer manter a dialética em termos filosóficos (abstrações gerais, concretudes totais etc.), mas se recair no idealismo. Parece que Lukács tenta achar um caminho pra isso em diversas tentativas. E aí sua saída é escrever, de várias formas, que o ontológico é o que determina o ideal.
COMENTÁRIO: [tinha caído, retoma] Achei interessante a parte em que ele fala de Kant, sobre a imprecisão da definição, que esta não consegue apreender a relação de todo em parte, sempre artificializa essa relação. Mas em algum momento ele deixa nas entrelinhas a diferença entre definição e conceito. Embora Hegel não se atenha a definições, ainda assim ele tem um certo cuidado com a noção de conceito, que é diferente (a coisa-em-si que se revela).
COMENTÁRIO: Me parece que Lukács não precisaria ter riscado o texto, pois é fiel a Hegel.
COMENTÁRIO: minha suspeita é que sem riscar, fica mais oneroso concluir a frase que não está riscada. Parece que ele desconfiou que o argumento estava ruim, mesmo. Desse jeito ele recai num Hegel que ele não quer recair, que é o Hegel que o Marx critica.
Leitura: “Essa situação mostra-se o mais nitidamente(...)” até “morada imediata das determinações de reflexão”.
COMENTÁRIO: voltando na insuficiência da definição: esta também é um exercício de separar a unidade do objeto diferenciando-se dos demais. Mas aqui nas determinações de reflexões, é interessante: não dá pra definir, mas dá pra conceituar, por conta do outro que é excluído na relação de seu entendimento e que é contido nessa exclusão. Na definição há essa exclusão radical. Nessas determinações de reflexão tem-se o outro como um elemento que não se perde na reflexão.
COMENTÁRIO: Aí se entende que o central não está no excluir, mas no referir-se.
COMENTÁRIO: E definir é excluir. No direito é claro, quando se define, exclui-se o restante (direito penal exclui direito do trabalho etc., havendo perda. O mundo do direito é da definição e não do conceito).
COMENTÁRIO: Como Hegel tem o objetivo de uma consciência total e espírito absoluto, a exclusão de pedaços do mundo pela razão (como faz Descartes) não é recepcionada por Hegel. A determinação só pode levar à incognoscibilidade da coisa-em-si. Só é possível às custas da precarização do conhecimento. Como conhecer um filme somente a partir de seus quadros em separado. A maneira de absorver a totalidade do mundo é superando a definição e apreendendo a realidade das coisas em suas relações (ex. da bolota do carvalho).
COMENTÁRIO: Nessa linha, acho que o ponto é mesmo a incognoscibilidade e seu efeito para uma ontologia. Por isso Lukács está entre Kant e Hegel O parágrafo pra mim foi cortado porque é irritante, obscuro. Neste outro parágrafo está muito mais claro. É complicado em Lukács porque em alguns momentos ele não deixa claro a qual Hegel específico ele se refere. Aí fica difícil. Parece que o riscado foi parte do entendimento do próprio Lukács diante da coisa.
COMENTÁRIO: Sim, fica bem tensionado. Agora, insistindo em outro ponto: às vezes desqualificamos um autor ou outro, mas tem algo bem importante aí em Lukács, inclusive no desvendamento dos entulhos e não entulhos do Hegel: é a chegada no cerne da crítica imanente. Isso nos ajuda a fazer um método marxiano melhor. Não devemos implicar com isso, porque podemos aprender bastante ainda que para pensar a imanência enquanto dado ontológico. Devemos tentar dar conta dessas questões procedimentais (o que é definição e o que é conceito, por que prestam ou não etc.). Isso não é desprezível para nós enquanto marxistas, especialmente diante da relação entre sujeito-objeto no capital.
COMENTÁRIO: “Parece tratar-se aqui, de uma questão acima de tudo gnosiológica...” até “Não se pode abrir mão do entendimento”.
COMENTÁRIO: ele pode ter riscado aquele trecho acima também por causa desta parte aqui. Do jeito que estava escrito, a questão do empírico aparecia como um excesso de concretude na abstração. Aqui fica claro que o empírico é importante pra razão, mas isso daqui não o torna concreto. Parece que fica mais claro aqui como fica o concreto pensado no Hegel, que é só essa relação abstrata. Lá em cima parecia conseguir alcançar essa concretude. Aqui ele se prepara melhor. É interessante, de todo modo, como a empiria entra na razão.
Leitura: “A razão se eleva, em Hegel, acima do entendimento(...)” até “‘apenas’ que o entendimento o faz na separação imediato-falsa, a razão na sua autêntica coordenação contraditório-dialética”.
COMENTÁRIO: um texto escrito de maneira desnecessariamente difícil.
COMENTÁRIO: meio que pra explicar a diferença entre Kant e Hegel, mas de um jeito complicado. Mas é isso: em Hegel não há possibilidade de uma razão pura.
COMENTÁRIO: três camadas de problemas: Hegel, Lukács interpretando Hegel, e a tradução.
COMENTÁRIO: Há a possibilidade de usar, de maneira fugaz, definições para o entendimento. O destino dessas definições no entendimento é sua dissolução no desenvolvimento do conceito.
COMENTÁRIO: Se você pega o entendimento como conhecimento do mundo nas suas mais ordinárias possibilidades, empiria mesmo, fica parecendo muito aquela coisa do concreto para o abstrato – porque estamos pegando algo do concreto – mas não é o processo do Marx de concreto-abstrato e abstrato-concreto. Nessa solução outra, isso que estaria na empiria vai se perdendo no processo racional. Aí vai ficando uma abstração que vale mais do que a percepção do concreto. Dá uma sensação de que aqui fica mais claro porque não dá pra usar a mesma dinâmica em Hegel com Marx, essa relação entre entendimento e razão. Isto aqui não se amolda à questão da práxis.
COMENTÁRIO: Se formos ler Marx a partir de Hegel, Hegel está só na segunda perna, a do abstrato ao concreto. Ele desaparece com a primeira perna, que é o concreto ao abstrato. Se pensarmos na categoria do valor, em Marx ela é abstraída pela reprodução social. Se a gente ler Marx pelo Hegel, ele faz o seguinte: entendimento é trocar a mercadoria pelo seu equivalente em dinheiro. E aí a gente faz as operações dialéticas da razão pra chegar na essência que está na produção. E talvez o problema seja justamente esse: o dado da materialidade está precipuamente na perna que desaparece em Hegel – o quanto a sociedade se reproduzindo vai se chegar nessa abstração que é posta como entendimento.
COMENTÁRIO: A minha impressão é a de que ele sairia do entendimento e ficaria constantemente na razão. Não voltaria para o entendimento. Como se saísse de um concreto diminuído, que é o empírico – que também não dá todas as dimensões – vai pra razão e não volta para o concreto. Se não há razão sem entendimento, mas entendimento sem razão, teríamos possibilidade de fazer operações empíricas de um concreto “empírico” (já diferente da determinação histórica de Marx) e ficar numa razão que não volta para o concreto.
COMENTÁRIO: É que o entendimento aí está ligado ao empírico mas não é o concreto empírico. Ele é a representação do concreto pelo empírico, então ele nunca voltaria para o concreto porque ele já começa de uma representação que é abstrata. É como entendo o Hegel, pelo menos. Não é tão claro aqui, mas acho que lendo o Hegel fica mais claro.
COMENTÁRIO: Não é que Hegel saia do entendimento pra razão e não retorne. A razão vai sendo construída a partir da coleção que ele faz das contradições do entendimento. Isso aparece em Marx na teoria do valor, como o Flavio colocou. Ele começa lá com a mercadoria, e diz do valor de uso, do valor de troca, passa pelas equivalências etc. Aí lá na frente ele diz que na verdade não é valor de uso e de troca, mas apenas valor de uso e “valor”. Então, hegelianamente talvez pudéssemos dizer: a partir do fenômeno nós capturamos as coisas pelo entendimento e, conforme elas estabelecem relações e se desenvolvem, a partir da coleta dessas contradições a gente vai constituindo a razão.
Quando o Flávio fala lá questão da segunda perna, talvez pudéssemos também dizer o seguinte: Hegel não constrói, como Marx, a consciência a partir do concreto. A consciência em Hegel é o início, o que determina o objeto ao se diferenciar dele. Aí existe a entrada recíproca de um em outro etc. A consciência é em Hegel sempre aquilo que tem o papel demiúrgico de criação, do fiat lux. É o movimento da consciência que faz caminhar o Espírito Absoluto. Já Marx diz que também a consciência é produto das relações sociais. De maneira grosseira, se pensássemos no vocabulário hegeliano em Marx, quando este parte da sociedade de mercadorias (ou seja, quando partimos dessa que é uma colocação – definição? – que irá se dissolver, ainda sem fazer a análise das contradições disso), temos um concreto, algo que se apresenta concretamente. Mas ainda é um “concreto geral”, ou seja, sem as determinações delineadas ou “particularizadas”. Após as dissecações das contradições, passando pelas categorias e chegando no valor e nas relações de classe, alcançamos esse fundo em que há não mais um “concreto geral” sem relações e determinações, mas um “abstrato particular”, ou um conjunto de particularidades que se relacionam entre si e que assim são percebidas unicamente pelas operações da abstração intelectual. A partir desse ponto, retornamos àquele “concreto geral”, o qual agora se transforma retrospectivamente, e se revela como sendo desde o início uma unitária “abstração geral” que se opõe ao ponto (momentaneamente) final do percurso metodológico, que por sua vez agora é uma coleção de “concretos particulares” percebidos em seu movimento interdependente (ou aquela síntese de múltiplas determinações – na verdade, é aqui que as relações de classe se realizam para o entendimento teórico, me parece). Então é esse passeio entre abstrato e concreto e também geral e particular que parece que Lukács quer equilibrar entre Marx e Hegel, mas tenho dúvidas se dá pra fazer isso assim, de usar o vocabulário de Hegel no método de Marx
COMENTÁRIO: dúvida. O Lukács tá expondo o entendimento como uma primeira movimentação da dialética e contrapondo isso à empiria como substrato do conhecimento dos gnosiológicos, faz essa diferenciação com Kant e tudo mais. Compõe o entendimento, por assim dizer, as determinações de reflexão. Mas Hegel emprega essa figura da reflexão, que é uma imagem, por assim dizer. O que me escapou é como a reflexão, como imagem, não é também uma representação. E para os gnosiológicos, está pressuposta a incognoscibilidade da coisa-em-si. Se para o entendimento, esse movimento inicial se dá por uma reflexão, e esta é uma imagem, então ela é também uma representação. Apesar das determinações da reflexão, o que faz com que ela deixe de ser uma representação e possa ser o primeiro contato com a coisa-em-si?
COMENTÁRIO: Há uma parte em que o Lukács fala da diferença entre a determinação e determinar. Numa abordagem caridosa do argumento de Hegel, podemos pensar no que enfatizamos quando pensamos em reflexão. Podemos enfatizar a imagem resultante da reflexão ou o processo pelo qual a luz sai de um ponto emissor, bate num anteparo e retorna. Esse processo de transformação. A pergunta é interessante porque mostra justamente a diferença do que o Hegel parece criticar. Ele diz que as representações são determinantes porque tentam justamente desprezar esse processo de transformação, de movimento. Não é tanto a imagem, mas a sequência do movimento. Talvez seja muito simplista, mas me parece muito o processo de sucessão de quadros num filme. A representação fica parada nos quadros, enquanto entendimento. A razão, por sua vez, vai focar no filme rodando.
COMENTÁRIO: me parece um pouco diferente aqui. Hegel me parece associar entendimento e razão com aparência e essência. A dinâmica desta última dupla não é assimilável à dinâmica de verdade e falsidade. Alguma coisa que aparece diferente da sua essência não é assim porque tem imagem distorcida ou algo assim, mas porque ela se manifesta dessa maneira. O entendimento está aí, e aí no desenvolvimento das contradições determinadas chegamos à essência pela razão. Então, reflexão aqui não me parece outro tipo de imagem, porque ele está falando de uma imagem que reflete não no sentido de representação, mas de manifestação em um sentido até necessário. Há aqui referência ao trecho da Fenomenologia do Espírito em que trata da indicação, e portanto, do universal e do singular. Parece-me que é um dos momentos em que isso fica mais claro em Hegel. Ao indicar o singular, indica-se também por aí o universal. A indicação do singular não é falsa, mas precisa se manifestar por meio do universal.
COMENTÁRIO: tudo isso me parece bastante problemático. Me parece muito mais o procedimento que é importante e não a relação sujeito-objeto. Vou fazer um devaneio: tudo isso só pode ser fruto da consciência de quem joga sobre o objeto alguma situação relacional. O objeto pra ser, no plano do pensamento, relacionado e ser um em-si (e aí o Kant parece ter uma certa razão), você teria que ter uma loucura de, p. ex., a mesa se sentir mesa, ela ter consciência de que ela é mesa, ou numa relação morto-vivo... a coisa-em-si me parece sempre uma consciência projetada, algo muito estranho. Mesmo levando em conta essa coisa reflexiva, ainda me parece sempre uma consciência projetada, senão teríamos que ter sempre uma consciência em cada coisa relacionada. Isso me parece só dar certo com Marx, na materialidade, na historicidade. Me parece que isso é que resolve o problema do Hegel. Agora, o Hegel em si me parece estranho.
COMENTÁRIO: O incômodo faz sentido no Hegel, porém, precisamos tomar cuidado com a coisa-em-si porque no texto do método sobre a economia o Marx admite a existência da coisa-em-si. Ele fala algo como “o objeto concreto continua subsistindo fora do cérebro”.
COMENTÁRIO: Sim, mas ela tem sentido na materialidade histórica, a coisa-em-si. P.ex., se eu falar da imanência do capitalismo, é uma coisa-em-si. Você consegue extrair dali da perspectiva histórica a coisa-em-si independentemente do nível de projeção que damos, porque está acontecendo no plano dos fatos. Agora, pegar uma coisa-em-si que não seja um processo histórico é muita projeção de consciência na coisa, o que em-si não tem consciência. Ou seja, de uma certa maneira, você tem que admitir uma coisa-em-si para que aquele negócio da luz que é jogada no olho etc. sirva de base para a ideia de reflexividade conforme dito.
COMENTÁRIO: O que a gente recepciona como sendo coisa-em-si no Marx? De fato, ele diz coisas no sentido do que o Flávio recuperou. Por exemplo, quando pegamos aquela frase que diz que fazemos história não como queremos, mas como podemos. Isso significa que existem processos para além da consciência individual, que é a sede do fazer teórico, do saber. Porém, a coisa-em-si do Kant não me parecem exatamente as coisas que acontecem independentemente da consciência, e sim o limite do próprio saber. Em Kant não temos como saber alguma coisa a não ser pelos instrumentos da consciência. Quando colocamos isso categorialmente, como Kant faz, fica complicado. Mas dialeticamente, é interessante porque, de fato, o conhecimento só pode existir nessa dança, ou reflexão, com o objeto. Ou seja, é absurdo, mesmo do ponto de vista da práxis, pensar em coisas com as quais não relacionamos nosso saber. Então, se há por exemplo um objeto que não pode ser concebido, isso fica como uma metafísica (mistérios teológicos a alma, liberdade, etc.). Então não é que a mesa tenha consciência de si, mas que só podemos construir qualquer discurso sobre esse objeto a partir de nossos elementos discursivos. Fica interessante dialeticamente porque vemos que qualquer objeto de que tratemos no discurso estará passível de atualizações, transformações e também disputas. Então, fazer história como se pode, e não como se quer, mostra o limite do saber enquanto consciência individual mas também indica o saber como enquanto um elemento social, uma questão de classe. Isso é uma das grandes sacadas do Marx. Embora ele tenha idas e vindas nesse sentido, muitas vezes ele aponta que os saberes, os conhecimentos, ideologia em sentido lato, o conhecimento é também fruto das relações sociais no modo de produção, e assim também estará em disputa. Assim não estamos mais falando de uma consciência individual geral, o “o sujeito”. Isso tensiona até o derretimento a ideia de um sujeito cognoscente. O subjetivismo metodológico em Marx é tensionado a partir do momento em que ele entende que os saberes também são determinados pela luta de classes. Ou seja, a coisa-em-si e as coisas que acontecem independentemente da nossa consciência têm uma diferença. Assim, em Marx, discursar sobre o objeto é sim constitui-lo, e isso é assim passível de disputa.
COMENTÁRIO: essa ponte do Kant pro Marx é bem complicado mesmo. Em Kant mesmo há uma diferenciação entre a razão pura e prática. A pergunta é muito diferente nas críticas. A primeira está preocupada com as possibilidades do conhecimento. O que o pensamento, a razão, a racionalidade é capaz de produzir em contato com o objeto, o qual nunca será 100%. Ou seja, a mente humana é incapaz de construir uma mesa concreta dentro de si própria. Vai ter contato com as coisas do mundo. E esse que é o limite pro Kant. Agora, na crítica da razão prática, ele vai usar aquilo que foi desenvolvido a partir da racionalidade pra pensar a moralidade, a ação em relação aos outros. O objeto é de outra natureza: é meu comportamento, por exemplo. A partir do que a razão mostra, eu mudo meu comportamento. O Marx está mais próximo disso (claro que com todo o aporte da materialidade que vem lá na frente) porque a pergunta do Marx tem a ver com o conhecimento que só faz sentido se puder incidir sobre o mundo concreto. Este, por sua vez, existe fora do pensamento, como diz a Tese XI. Existe o mundo aí. Mas as perguntas são diferentes.
Agora, parecia resolvido no Lukács que a contribuição do Kant não seria tão relevante para a ontologia, mas aos poucos ela vem retornando insidiosamente. A questão das condições do conhecimento está voltando, ele está falando muito disso. Pra explicar Hegel ele está muito mais num paralelo com Kant do que o que Marx vai colocar lá na frente.
COMENTÁRIO: mas me parece que Lukács tira o Kant precisamente porque ele não se propôs a uma ontologia. O kantismo é a negação da possiblidade de uma ontologia. A coisa-em-si é incognoscível e ele só fica nas representações. Eu consigo entender porque ele não passa sobre o Kant, porque o percurso é sobre a ontologia. Porém, o grande contraponto ao Hegel, para entender o que ele fala, é mesmo Kant.
COMENTÁRIO: mas mesmo na parte anterior do livro, onde ele fala da falsa ontologia, ele não se dá ao trabalho de escantear o Kant.
COMENTÁRIO: sim, ele não falaria de qualquer modo porque o Kant não se propõe a uma ontologia, justamente.
COMENTÁRIO: certo, mas outros também não propõem ontologia e mesmo assim Lukács os exclui.
COMENTÁRIO: Kant põe muito mais radicalmente do que qualquer outro, provavelmente, a separação radical entre S-O do conhecimento. Acho que Lukács puxa Kant pra tentar contrabalançar a identidade de Hegel entre S-O.
Leitura: “Se se observa esse percurso gnosiológico de Hegel...” até “Isto está mais perto daquele Goethe que Heine denominou ‘espelho do mundo’, do que daquele ativismo intelectual unilateral de Kant e Fichte”.
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